30 setembro 2006

Teatro Gil Vicente assegura estreia às companhias locais

[Recorte-TAGV]

Foto © Manuel Correia

TAGV acolhe companhias de teatro de Coimbra sem espaço próprio e ainda lhes cede 80% da bilheteira. A companhia teatral Marionet estreou, anteontem à noite, "Led - Viagem ao Interior num Computador", e a associação Camaleão apresenta, a partir de amanhã, duas peças de teatro num único acto, "As Crianças" e "Os que rastejam". Ambas as estreias têm um facto em comum são protagonizadas por grupos de teatro de Coimbra e acontecem na principal sala de espectáculos da cidade, o Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV).

Embora as duas companhias já tenham estreado produções anteriores no mesmo espaço, não pode dissociar-se aquele facto do protocolo firmado, a 27 de Maio [Março] passado, pela direcção do TAGV, duas licenciaturas de estudos artísticos e 13 grupos de teatro de Coimbra. O acordo - subscrito pelo TEUC, CITAC, Camaleão, Bonifrates, Encerrado para Obras, GEFAC, Marionet, Ócios & Ofícios, Buh!, Teatro Anónimo, Teatro do Morcego, Xarabanecos e Thíasos e pelos cursos de Estudos Artísticos da Faculdade de Letras de Coimbra e de Teatro e Educação da Escola Superior de Educação de Coimbra - prevê que estas entidades possam estrear os seus trabalhos e dar um segundo espectáculo no Gil Vicente. Um quinto das receitas de bilheteira reverte para o TAGV, os restantes para as companhias.

"É uma bolsa de ar fresco nesta cidade", observa Helena Faria, da Camaleão, sobre o protocolo, que deixou de fora o Teatrão e A Escola da Noite, por possuírem salas próprias. A actriz da Camaleão nota que "Coimbra tem alguns espaços, mas estão sempre ocupados". "Podermos mostrar o nosso trabalho num espaço nobre é dignificante", diz. Sustenta ainda que cultura em Coimbra depende muito da actividade das companhias mais pequenas e menos abonadas e este programa de estreias revela um "grande respeito" do TAGV por elas.

A direcção do Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV) criou um blogue (http//blogtagv.blogspot.com) e um dos seus objectivos é "encorajar" quem ali assiste a espectáculos a fazer recensões críticas dos mesmos. Como explica o director do Gil Vicente, Manuel Portela, aquele desafio é a reacção possível ao diminuto espaço que os órgãos de comunicação social vêm dedicando à crítica de teatro, música e outras expressões artísticas. De resto, o blogue do teatro "não se destina a apresentar a programação, uma vez que isso tem sede própria nas páginas do sítio web e na agenda mensal do TAGV", mas antes a "fazer um registo selectivo das actividades em curso". Visa, por outro lado, "articular uma reflexão continuada sobre as condições de produção e recepção que caracterizam a programação do TAGV". Manuel Portela pretende, igualmente, ali reproduzir algumas notícias de jornais sobre o teatro e levar os próprios funcionários a escreverem sobre o seu quotidiano. Só serão permitidos comentários nalguns temas "mais abertos".

Nelson Morais, Jornal de Notícias, 27-09-2006

25 setembro 2006

Agarrar as imagens

[Máquina-TAGV]





João Silva, projeccionista, TAGV: fotos de Maria Miguel Ferrão (28-07-2006)

O movimento das imagens que define o cinema resulta de um conjunto complexo e concorrente de movimentos, humanos e mecânicos. O movimento do mundo e dos seres diante da câmara. O movimento da câmara diante do mundo e dos seres. O movimento do filme dentro da câmara. O movimento químico da luz sobre a película. O movimento da montagem sobre os fotogramas. O movimento do filme dentro da máquina de projecção. O movimento das imagens sobre o écran. O movimento dos olhos diante das imagens. O movimento do pensamento que acompanha o movimento dos olhos. No escuro da sala, o movimento da imaginação desencadeado pelo movimento das imagens parece desvincular-se da materialidade da película. Na cabine de projecção, no entanto, é possível agarrar o filme nas mãos.
MP

23 setembro 2006

Estreias TAGV

[Notícia-TAGV]


Apesar das actuais limitações na capacidade de produção própria — que impedem, por exemplo, a encomenda directa de obras, e restringem o número de festivais —, o TAGV propõe-se valorizar a criação teatral e performativa local, universitária e extra-universitária, na sua programação. Propõe-se também educar mais público para o teatro. Foi precisamente essa intenção que se concretizou no protocolo de colaboração assinado com treze Grupos de teatro e com as licenciaturas em Teatro e Educação (da Escola Superior de Educação de Coimbra) e em Estudos Artísticos (da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), a 27 de Março de 2006. Acresce a isto a intenção de programar teatro e oficinas de expressão dramática para a infância e juventude.

Desde Junho de 2006, o programa Estreias-TAGV permitiu apresentar as seguintes criações: «À Espera, Adeus, Eu Fico», escrito e encenado por Mickaël de Oliveira, com partitura original de Francisco Pessanha (a 12 e 13 de Junho de 2006); «Senhora D», de Hilda Hilst, pelo Teatro do Morcego, com encenação de Carlos Martins e Ana Varela (a 28 e 29 de Junho); «O Amor de Longe», de Amin Maalouf, com encenação de Margarida Miranda (a 12 e 13 de Julho); «LED – viagem ao interior num computador», com texto e encenação de Mário Montenegro, pela Marionet (a 25 e 26 de Setembro); «As Crianças» e «Os que rastejam», de Russell Edson, pela Camaleão, com tradução e encenação de José Geraldo (a 28, 29 e 30 de Setembro), um projecto apoiado pelo Instituto das Artes. Apresentaremos ainda «Physicomic», última criação da Encerrado para Obras (a 30 e 31 de Outubro); e «Bengala dos Cegos», o novo projecto de teatro e ciência da Marionet, com apoio do Instituto das Artes (a 18, 20 e 21 de Novembro).
MP

20 setembro 2006

Instantâneos TAGV (1)

[Máquina-TAGV]

Cabine de Projecção. Foto da montagem do filme All Or Nothing
(Ciclo de Cinema "Mike Leigh no TAGV "): PDS (19-09-2006; 15h47m)

Tal como a Terra, também a “enroladeira” do TAGV não imagina a quantidade de voltas que já deu. No conjunto dos muitos filmes que ajudou a bobinar, preparando-os para posterior exibição, certamente incontáveis milhares. Enrolando e juntando quilómetros de película, alinha os fotogramas na sequência cronológica correcta, através de um processo tão simples quanto fundamental, contribuindo assim para a exibição das mais diversas obras cinematográficas. Ainda bem que é incansável. PDS

18 setembro 2006

O que é o TAGV?

[Máquina-TAGV]

Sra. Antónia Mimoso, TAGV: foto de Maria Miguel Ferrão (28-07-2006)

Quando se pergunta o que é uma instituição, depressa se percebe que há um conjunto de respostas possíveis. Podemos dizer que uma instituição é a história dessa instituição. Podemos responder também que a instituição é a representação colectiva da instituição, tal como surge no discurso social ou no discurso dos média. Ou que é o conjunto de relações entre um espaço arquitectónico e as actividades públicas aí realizadas. Ou ainda, que é o conjunto de relações de trabalho que determinam as actividades realizadas. Todas estas imagens estão estreitamente interligadas. E intersectam-se apenas parcialmente. A resposta dada a partir do lugar da recepção, por exemplo, dificilmente coincide com a resposta dada a partir do lugar da produção. A representação construída a partir de um contacto esporádico é necessariamente diferente da representação construída a partir de um contacto frequente. Além disso, o tempo modifica os modos de fazer e de perceber o que se faz. Para uma instituição como o TAGV, com mais de 40 anos de actividade, a variedade de respostas àquela pergunta inicial é certamente muito grande.

Uma das formas de completar a resposta sobre a identidade de uma instituição é aquela que passa pela observação das suas práticas de organização e funcionamento quotidiano. Isto é, aquela que olha para as formas de trabalho que permitem realizar a sua função específica. A ideia de representar uma instituição nos seus dirigentes, embora prática do ponto de vista jurídico, é materialmente falsa. A programação do TAGV depende necessariamente de um trabalho colectivo. Este trabalho passa, muitas vezes, despercebido. Ou só se dá por ele quando alguma coisa corre mal. Esquecemo-nos de como a intensa actividade do TAGV é assegurada por uma equipa de pessoas, cujo trabalho administrativo, técnico e artístico garante as condições para os encontros entre artistas e público que aqui têm lugar. O objectivo desta secção, «Máquina-TAGV», é mostrar o colectivo de cujo trabalho a identidade pública da instituição se constrói. Pequenos apontamentos fotográficos ou textuais darão conta dessa actividade que está fora e antes e além do palco.
MP

17 setembro 2006

Antevisão da temporada 2006-2007

[Notícia-TAGV]

William Hogarth (1697 - 1764), A Scene from the Beggar's Opera (1728-29, óleo sobre tela) © National Gallery of Art, Washington


No Encontro do passado dia 14 de Julho, foram apresentados os princípios orientadores e as linhas gerais da programação para 2006-2007. A observação da temporada 2005-2006 mostra a necessidade de se terem bem presentes estes dois princípios para uma política de utilização da sala coerente:

1º) A programação deve ser fortemente estruturada, sob iniciativa da Direcção do Teatro, evitando a programação avulsa ou o mero acolhimento de propostas externas por decisões contingentes ou sujeitas à pressão do mercado de espectáculos (a proporção deste modo de programação no conjunto deverá ser menor do que em 2005-2006);

2º) O TAGV não é uma sala para arrendar: as cedências de sala devem limitar-se àquelas que estão consagradas nos protocolos de colaboração com instituições educativas e culturais da cidade, ou que não ponham em causa os princípios orientadores da programação.


William Hogarth (1697-1764), Heads of Six of Hogarth's Servants (c. 1750-55, óleo sobre tela) © Tate Gallery, London

Programar implica responder pelo menos a estas perguntas:
1) Como combinar as várias disciplinas artísticas?
2) Que programação de dança/teatro/cinema/música/exposições é necessária?
3) Que padrões semanais, mensais ou anuais estabelecer?
4) Como realizar a dimensão especificamente universitária do TAGV?
5) Como integrar a produção local na programação?
6) Que dimensão internacional deve ter o TAGV?

A antevisão da temporada 2006-2007 responde a algumas daquelas perguntas, designadamente através do reforço da programação em certos domínios (como a música erudita, o cinema e a dança), da padronização das produções apresentadas em ciclos (com padrões temporais e temáticos claramente perceptíveis), do aumento da produção própria (com mais iniciativas originais), do incentivo à criação local (com um programa de estreias mensais dos grupos de teatro de Coimbra) e da valorização da educação artística. As produções previstas para 2006-2007 podem dividir-se em dois conjuntos: por um lado, produções cíclicas da(s) temporada(s) anterior(es) que se retomam na temporada 2006-2007; por outro lado, novas produções que se introduzem nesta temporada (sequências de concertos, de espectáculos de dança, de cinema e de teatro, ou outro tipo de iniciativas, programadas ao longo do ano, ou ao longo do mês, segundo uma lógica temática – de período, de autor, de género, etc. – e seguindo padrões temporais a definir; algumas destas iniciativas poderão tornar-se cíclicas e ser retomadas em futuras temporadas).

William Hogarth (1697 - 1764), The Graham Children (1742, óleo sobre tela) © National Gallery, London


A) Produções cíclicas, que se mantêm na temporada 2006-2007:
1) Festival de Blues, em Março («Coimbra em Blues»);
2) Festival de Jazz, em Junho e Novembro («
Jazz ao Centro»);
3) Festival de Música, em Outubro e Novembro («Festival de Música de Coimbra»);
4) Semana Cultural da Universidade de Coimbra, em Março;
5) Festival de Cinema Português, em Abril («Caminhos do Cinema Português»);
6) Festival de Vídeo, em Junho («Videolab»);
7) Festival José Afonso, em Junho (bienal, dependente de financiamento, ainda por confirmar);
8) Extensões de outros festivais: Curtas-Metragens de Vila do Conde; Cinanima de Espinho; e Indie Lisboa.

B) Novas produções da temporada 2006-2007:
cinema e vídeo
1) «7ª Festa do Cinema Francês», em Outubro;
2) «Semana do Cinema Espanhol», em Outubro;
3) Mostra de Cinema Irlandês, em data a anunciar;
4) Pequenos ciclos de autor: «Mike Leigh no TAGV», em Setembro; «David Cronenberg no TAGV», em data a anunciar; etc.
5) Ciclos «Outros filmes, outros lugares», dedicados a filmes do último ano cuja origem cultural e linguagem narrativa se afasta das formas cinematográficas dominantes, em diversos momentos;
6) Ciclos «Fila K Cineclube»;
7) Ciclos temáticos de vídeo, em diversos momentos;

música
8) Ciclo de Música Antiga (dedicado a um compositor ou a um período), em data a anunciar;
9) Ciclo de Música Contemporânea, em Maio;
10) Ciclo de Música Electrónica, mensal, a partir de Janeiro;

dança
11) Ciclo de Dança Contemporânea, em data a anunciar;


William Hogarth (1697 - 1764), David Garrick as Richard III (1745, óleo sobre tela) © Walker Art Gallery, Liverpool

teatro e performance
12) Ciclos de teatro: tanto quanto possível a programação de teatro deverá também organizar-se segundo uma lógica temática - de período, de autor, de género, de companhias, etc;
13) Programa «Estreias TAGV»: estreias no Auditório (e no Café-Teatro) de novas produções dos grupos de teatro locais; procuraremos ainda produzir uma peça de teatro, um espectáculo multidisciplinar ou um concerto, encomendados e concebidos especificamente para o TAGV;

interdisciplinar
14) Ciclo «TAGV digital»: ciclo de criações interdisciplinares e multimédia, centradas na materialidade dos meios digitais, ao longo do ano;
15) Ciclo «Blake no TAGV», a propósito dos 250 anos do nascimento do poeta inglês William Blake (1757-1827), em Maio;

literatura
16) Ciclo «máquinas narrativas»: ciclo de leituras dedicadas à ficção contemporânea (diversos autores serão convidados a ler excertos das suas obras em pré-publicação ou acabadas de publicar), uma vez por mês ao longo de 2007;

programação do serviço educativo
17) Oficinas temáticas em todas as disciplinas, concebidas a partir da programação do TAGV;
18) Espectáculos de teatro;
19) Concertos didácticos;
20) Leituras dramatizadas;

programa de exposições
21) Exposições ligadas à programação do TAGV (caso das retrospectivas de festivais ocorridos no TAGV) ou às artes cénicas em geral;
22) Exposições ou instalações produzidas especificamente para os espaços do TAGV;
23) Exposições de ilustração: serão retomadas as exposições de ilustradores, em particular de literatura para crianças, em articulação com a programação educativa de oficinas e leituras.
MP

11 setembro 2006

Setembro 2006

[Arquivo-TAGV]


Os dias ficaram mais pequenos. A luz amarela do final da tarde prenuncia já o regresso do Outono. Um novo ciclo temporal tem início. O recomeço não é afinal mais do que uma continuação. As ideias estão um pouco mais claras. Os objectivos mais bem definidos. Mas permanecem as interrogações, a que teremos de voltar a responder. O que é desejável? E, do desejável, o que é possível? Prossegue o projecto de estrear produções locais: em Setembro, chegam ao TAGV as novas produções da Marionet e da Camaleão. O CITAC comemora os 50 anos. Tem início um conjunto de novos ciclos de cinema, com cinco longas-metragens de Mike Leigh. Um recital de Constantin Sandu, a assinalar os 250 anos do nascimento de Mozart, prefigura também a programação de música da temporada. A «escrileitura» traz Osvaldo Manuel Silvestre e Adília Lopes. O TAGV retoma lentamente o fôlego e vai à procura de amigos/as. O recomeço é discreto e, quem sabe, auspicioso.
MP

01 setembro 2006

Retroprospecção (14-31 Julho 2006)

[Arquivo-TAGV]




Fotos da exposição «Retroprospecção»: Maria Miguel Ferrão (28-07-2006)

Olhar para trás e ver para a frente

[Arquivo-TAGV]

O mês de Julho de 2006 encerrou com uma
exposição retrospectiva da actividade do TAGV durante a temporada 2005-2006. A 14 de Julho teve lugar um encontro entre toda a equipa do TAGV e um conjunto de colaboradores externos, destinado a pensar colectivamente o presente e o futuro da programação. Qual a função do TAGV no seu contexto específico? Quais as lacunas evidentes? O que é necessário reforçar? O que é necessário mudar? Um dos objectivos deste encontro, como de resto da própria exposição, foi dar a conhecer de forma detalhada e panorâmica o conjunto das actividades realizadas. Outro objectivo foi permitir a troca de pontos de vista disciplinares, isto é, de pontos de vista construídos a partir dos modos de produção e de recepção específicos do teatro, da dança, do cinema e da música. Para a Direcção do Teatro, o encontro de 14 de Julho teve ainda a função adicional de permitir conhecer melhor a implantação local do TAGV na sua relação com artistas e programadores de Coimbra.

Ao longo de 2005-2006, dilemas e princípios de programação foram sendo explicitados nos pequenos editoriais que abriam as agendas mensais. São esses textos, com as capas das agendas respectivas, que aqui se republicam como ponto de partida para 2006-2007. Estes vestígios do que se passou podem ser lidos de duas formas: por um lado, como registo que (quase) permite reconstruir o ano que passou; por outro, como registo que (quase) permite imaginar o ano que começa. Foi precisamente essa a intenção original de «
Retroprospecção»: a partir de um conhecimento informado do conjunto das actividades do TAGV, procurar as directrizes e os padrões (temporais e disciplinares) que contribuam para definir e realizar melhor a sua função.

É esta interacção permanente entre o acto de fazer e o acto de pensar sobre aquilo que se faz que se pretende alargar também ao BLOG TAGV. A azáfama quotidiana, a grande intensidade da programação e o carácter, até certo ponto, efémero das artes do espectáculo impedem ou desencorajam, por vezes, o exercício auto-reflexivo. Mas este exercício é essencial para que se compreenda bem o alcance concreto dos actos de produção e programação. O blogue, se for um registo mais diferido e ponderado do que instantâneo e espontâneo, poderá contribuir para criar uma perspectiva no tempo, através do cruzamento das temporalidades curtas, médias e longas. Trata-se portanto de ajudar a ver,
em linha, a linha do caminho que se faz.
MP

O ano corre sempre mais depressa

[Arquivo-TAGV]

Olhar para trás significa tomar consciência do caminho percorrido. Que é também um caminho construído. Pelas decisões de programação e produção tomadas. Pelos constrangimentos que condicionaram essas decisões. E pela conjunção dos factores aleatórios que ocasionaram encontros entre artistas e público num certo dia do ano. Trata-se de construir uma visão do todo a partir dos vestígios gráficos e documentais. Reorganizar ainda uma vez mais a proliferação de signos, de gestos e de sentidos. Truque destinado a fixar o que não se consegue fixar. A passagem do tempo e a passagem da memória da passagem do tempo. Perceber o que se fez a partir de um ponto de fuga. Encontrar uma perspectiva. Ou mais do que uma. Rodando a cabeça na direcção oposta é quase possível antever o caminho. Que é como quem diz prospectar. Como fazer? Como fazer melhor?

Junho começa da melhor forma: com a primeira parte dos «Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra». Poderemos ver IMI Kollektief, The Thing vs Scorch Trio e Mário Pavone Quintet. O dia 1 de Junho, Dia Mundial da Criança, é assinalado por um concerto didáctico, programado também no âmbito do Festival de Jazz. A programação educativa contará ainda com a colaboração do Conservatório de Música de Coimbra, a 9 de Junho. O pianista José Eduardo Martins interpreta Fernando Lopes-Graça e Alexander Scriabine. No que diz respeito ao teatro, refiram-se as produções «Mal Vistos» de Gemma Rodriguez, pelas Visões Úteis, e também duas criações locais com estreia no TAGV: o espectáculo concebido por Mickael de Oliveira «à espera, adeus, eu fico», e ainda a nova produção do Teatro do Morcego, «Senhora D.», de Hilda Hilst. Concretizando os princípios contidos no protocolo assinado no passado dia 27 de Março, o TAGV dispõe-se a apoiar a experimentação dramatúrgica e performativa em Coimbra. Por fim, refira-se a programação do Videolab, que nos traz mais uma amostra da vitalidade actual do vídeo.

Os campos enchem-se de papoilas e o mês de Maio volta a ser o mês feliz que costuma ser. O novo espectáculo do GEFAC, «A Água Dorme de Noite», volta ao TAGV. Acolhemos uma extensão do festival Indie-Lisboa, com seis sessões, uma das quais para a crianças. A programação para a infância será completada pela Encerrado para Obras. Mas o grande destaque vai para uma produção da casa: «Beckett no TAGV», um pequeno festival destinado a celebrar a obra de um dos grandes autores do século XX, no ano em que se assinala o centenário do seu nascimento. Graças a um programa multidisciplinar, que cruza cinema, teatro, rádio, fotografia e literatura, a obra de Samuel Beckett (1906-1989) poderá ser conhecida e apreciada em múltiplas facetas. O pianista Filipe Pinto-Ribeiro e o Shostakovich Ensemble apresentam obras de Dmitri Shostakovich (1906-1975), cujo centenário se comemora igualmente em 2006. Por último, mas não o último, refira-se a presença do poeta norte-americano Charles Bernstein, figura cimeira de uma poética centrada na crítica da linguagem como instrumento de opressão.

O ano corre sempre mais depressa do que se imagina. E a imaginação voa sempre mais alto do que seria prudente. Mas de um Teatro, e do público que faz um Teatro, espera-se que estejam à altura dos artistas. Do desafio que estes lhes lançam. Ao perscrutarem o real com a linguagem e com o corpo, e com a luz, e com o som. Em Abril, este repto é coreográfico, musical e cinematográfico. «O Amor ao Canto do Bar Vestido de Negro», última criação da Companhia Olga Roriz, sobe ao palco no dia 6. O centenário do nascimento do compositor Fernando Lopes-Graça é assinalado por três recitais. Bernardo Sassetti traz-nos «Alice», meticulosa e obsessiva sonorização da inquietação a chover na vida. Os «Caminhos do Cinema Português» revelam, de novo, a produção cinematográfica e videográfica nacional, nos seus vários géneros e formatos: curtas, longas, animação, documentário, película, digital. Prossegue a programação para as escolas, com destaque para a música e o cinema. O ciclo «escrileituras» recebe Manuel António Pina e Winnie-the-Pooh, uma parelha sui generis.

A pouco e pouco, a actividade do TAGV aproxima-se de uma lógica que combina produzir, programar e formar. No mês de Março, anunciando porventura a Primavera, este equilíbrio triangular começa a despontar. O mês abre com a VIII Semana Cultural da Universidade de Coimbra, de que destacamos a «História Trágico-Marítima» de Fernando Lopes-Graça e o pequeno ciclo de cinema «Mar Português». Contrariando a maré melancólica, a quarta edição do Festival de Blues de Coimbra está de novo de pé. É justo também destacar-se um dos espectáculos teatrais mais fabulosos da temporada: «Os Encantos de Medeia», pelo Teatro de Marionetas do Porto, com que o TAGV comemora o Dia Mundial do Teatro. Assinam-se, neste dia, protocolos de colaboração com os grupos e cursos de teatro de Coimbra. Começa a tomar forma um Serviço Educativo. Lançamentos, debates, mesas-redondas e leituras tomam conta do Café-Teatro. O público acorre e participa, comovido e encantado.

Como é habitual, o mês de Fevereiro no TAGV volta a ser preenchido por uma selecção de alguns dos melhores filmes do ano anterior. Desta vez poderemos ver, ou rever, obras de Jafar Panahi, Fatih Akin, George Romero, Tim Burton, Marc Forster, Clint Eastwood, Gus Van Sant e Park Chan-Wook. Destacamos ainda «Memórias de um Sábado com Rumores de Azul», uma produção em que a Companhia Paulo Ribeiro revisita algumas das suas coreografias dos últimos dez anos. Este é a primeira de um conjunto de companhias de dança que queremos continuar apresentar nos próximos meses. Assinale-se também a última produção dos Artistas Unidos, Orgia, a partir de um texto de Pier Paolo Pasolini, cujos poemas se poderão ouvir no Café-Teatro. Prossegue entretanto o ciclo «escrileituras», com Hélia Correia e a obra Antígona, de Sófocles.

O TAGV deve poder aplicar na programação um conjunto de critérios que mostrem a existência de uma intencionalidade e de uma política cultural para a comunidade universitária e para a cidade de Coimbra. Isto significa, entre outras coisas, a capacidade de contratar espectáculos e criações numa modalidade contratual em que seja possível assumir riscos financeiros. Significa também a capacidade de assumir produções próprias. Só assim se pode criar uma relação dialéctica entre servir o público e formar o público. É certo que há áreas, como o cinema e os vários géneros de música pop, nacional e internacional, ou de música do mundo, em que é possível uma programação de alta qualidade mesmo nas condições actuais. O mesmo não se pode dizer, todavia, da música erudita ou do jazz, nem do teatro, e ainda menos da dança, seja em formas clássicas, seja em formas contemporâneas. Num momento em que as três fontes de financiamento público do TAGV (Universidade de Coimbra, Ministério da Cultura e Câmara Municipal) sofreram cortes nos seus orçamentos, o dilema é, mais uma vez, o que fazer agora?

Entre os projectos de programação para a temporada 2005-2006, quero destacar os ciclos de cinema. Uma parte muito significativa da interrogação do mundo através do cinema é feita com instrumentos narrativos e fílmicos diferentes daqueles que dominam os circuitos de distribuição. É redundante portanto sublinhar a importância de uma programação alternativa, que permita conhecer cinematografias, géneros e autores que alargam o campo de referência da palavra cinema. Além disso, este conhecimento multicultural e multilingue da produção do presente deve enriquecer-se com o conhecimento da história do cinema. Em colaboração com o Fila K-Cineclube, com o Centro de Estudos Cinematográficos da Associação Académica de Coimbra ou com outras iniciativas colectivas e individuais, o TAGV procurará alargar a oferta de cinema. Documentário, animação, curtas-metragens, uma geografia mais vasta, autores clássicos, ciclos temáticos – com estes formatos, géneros e princípios em mente se fará o programa de cinema, que em Dezembro é dedicado a Rainer Werner Fassbinder.

A identidade do TAGV constrói-se também através dos projectos de programação e produção próprios, organizados sob a forma de ciclos, encontros, mostras e festivais. Estes projectos têm ainda uma importante dimensão adicional, pois nascem muitas vezes de iniciativas de locais, permitindo cimentar relações de colaboração com associações de especialistas nas áreas em causa. O capital de conhecimento necessário à programação encontra-se disseminado na sociedade. É por isso importante perceber que uma parte da função de programar consiste em apoiar esta capacidade de iniciativa, em que paixão e conhecimento se aliam. Os «Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra» são um desses projectos. Lançados em 2003, por iniciativa da associação Jazz ao Centro Clube e com apoio da Câmara Municipal de Coimbra, estes Encontros vieram colocar a cidade de Coimbra no circuito nacional dos concertos e festivais de jazz, com um conjunto de músicos norte-americanos e europeus de primeiro plano. A 3, 4 e 5 de Novembro decorre o segundo momento dos Encontros de 2005. Desta vez estarão no TAGV Aldo Romano, Louis Sclavis e Henri Texier, o Alberto Conde Trio e o Quinteto de Fredrik Nordström. É com expectativa e entusiasmo que o TAGV abre de novo as portas ao jazz.

Reforçar a qualidade e a coerência da programação, repartindo-a de forma aproximadamente idêntica pelas áreas do teatro, do cinema, da música e da dança. Em cada uma destas áreas, acolher produções de repertório clássico e criações contemporâneas. Fazê-lo com a preocupação de representar diversos géneros e práticas artísticas. Alargar a colaboração com outras instituições e a programação em rede. Manter os festivais anuais e bienais. Construir também um público infantil e um serviço educativo. Acolher debates, lançamentos e exposições que possam constituir um espaço público de comunicação sobre práticas sociais, científicas e artísticas contemporâneas. Garantir e reforçar a participação do Ministério da Cultura e da Câmara Municipal de Coimbra no orçamento. Continuar a fazer do TAGV um interface privilegiado da relação entre a Universidade de Coimbra e a comunidade. Parece demais, mas é o que TAGV tem de facto tentado fazer nos últimos anos. Recomeçar significa portanto continuar. Significa tentar fazer melhor. Sabendo que servir o público é, ao mesmo tempo, construir o público.


MP

Charles Bernstein no TAGV (24 Maio 2006)

[Arquivo-TAGV]

Foto de Charles Bernstein por John Havelda (24-05-2006)


CHARLES BERNSTEIN, Estórias de Guerra

Guerra é a continuação da prosa por outros meios.
Guerra é nunca ter de pedir desculpa.
Guerra é o corolário lógico da certeza moral.
Guerra é resolução de conflitos para os deficientes estéticos.
Guerra é um barco lento para o céu e um comboio expresso para o inferno.
Guerra é ou uma falha de comunicação, ou a expressão mais directa possível.
Guerra é o primeiro recurso dos canalhas.
Guerra é o legítimo direito dos impotentes de resistir à violência dos poderosos.
Guerra é uma ilusão tal como a paz é imaginária.
«Guerra é bela porque combina os disparos das espingardas, o canhoneio, o cessar-fogo, os odores e os fedores da putrefacção numa sinfonia.»
«Guerra é uma coisa que decide como se há-de fazer quando se há-de fazer.»
Guerra não é uma justificação para a hipocrisia das pessoas que se lhe opõem.
Guerra são os outros.
Guerra é uma caminhada de cinco milhas num cemitério de uma milha.
Guerra é a forma de a natureza dizer eu avisei-vos.
Guerra é o forjar da oportunidade.
Guerra é «um troço niponizado do velho comboio elevado da sexta avenida.»
Guerra é a fundação relutante da justiça e o garante inconsciente da liberdade.
Guerra é o sonho desfeito do patriota.
Guerra é a morte lenta do idealismo.
Guerra é realpolitik para os velhos e realismo não mitigado para os novos.
Guerra é pragmatismo com um rosto inumano.
Guerra é para o Estado o que o desespero é para a pessoa.
Guerra é o fim da estrada para aqueles que perderam o rumo.
Guerra é um poema com medo da sua sombra mas impetuoso no seu curso.
Guerra é os homens feitos aço e as mulheres feitas cinzas.
Guerra nunca é uma razão para guerra mas raramente é uma razão para qualquer outra coisa.
Guerra é uma baixa da verdade tal como a verdade é uma baixa da guerra.
Guerra é a reparação dos nus.
Guerra é o ópio dos políticos.
Guerra está para o compromisso como a morbilidade está para a mortalidade.
Guerra é poesia sem canto.
Guerra é a traição que o mundo faz à plenitude da terra.
Guerra é como um gorila ao telétipo: nem sempre a melhor escolha mas às vezes a única que se tem.
Guerra é uma febre que se alimenta de sangue.
Guerra nunca é mais do que uma extensão de thanatos.
Guerra é a forma de a geração mais velha compensar os erros da sua juventude.
Guerra é moral, paz é ética.
Guerra é o derradeiro entretenimento.
Guerra é a resistência em pessoa.
Guerra é a forma de o capitalismo testar os seus limites.
Guerra é um produto inevitável da luta de classes.
Guerra é o tio da tecnologia.
Guerra é uma desculpa para muita má poesia anti-guerra.
Guerra é o direito de um povo oprimido.
Guerra é notícia que continua a ser notícia.
Guerra é a arma principal de uma revolução que nunca se pode realizar.
Guerra aproveita a quem nada tem a perder.
Guerra é Surrealismo sem arte.
Guerra ganha-se mas não se lhe sobrevive.
Guerra são dois males a obliterar o bem.
Guerra é o abandono da razão em nome dos princípios.
Guerra é sacrifício por um ideal.
Guerra é a profanação do real.
Guerra é injusta mesmo quando é justa.
Guerra é a vingança dos mortos sobre os vivos.
Guerra é a vingança na pessoa errada.
Guerra é o grito da criança de negro, da mulher de vermelho e do homem de azul.
Guerra é impotência.
Guerra é carne viva.
Guerra é a luta declarada de um Estado contra outro mas é também a violência não declarada do Estado contra o seu próprio povo.
Guerra não é pecado na defesa da liberdade; apaziguamento não é virtude na busca da auto-protecção.
Guerra é o maior inimigo da tirania.
Guerra é o maior amigo da tirania.
Guerra é a solução; mas qual é o problema?
Guerra é um cavalo que refreia o cavaleiro.
Guerra é o símbolo inadequado da sociedade humana.
Guerra é a melhor forma de avivar as brasas de inimizades antigas.
Guerra é uma batalha pelos corações e espíritos dos desalmados e mentecaptos.
Guerra é a história contada pelos vencedores.
Guerra é a morte da civilização em busca da civilização.
Guerra é o fim justificar a maldade.
Guerra é um SUV para cada Papá do futebol e para cada Mamã social.
Guerra é feita pelos ricos e paga pelos pobres.
Guerra é alternativa da TV de qualidade para You Still Don't Know Jacko: Cookin' with Michael e Fear Factor: How to Marry a Bachelorette.
Guerra não é uma metáfora.
Guerra não é irónica.
Guerra é a sinceridade num movimento em série.
Guerra é um jogo de xadrez gravado na carne.
Guerra é violência táctica para o domínio estratégico.
Guerra é preocupação internacional para esconder indiferença doméstica.
Guerra é o diabo em overdrive.
Guerra é a nossa única esperança.
Guerra é a nossa herança.
Guerra é o nosso património.
Guerra é o nosso direito.
Guerra é a nossa obrigação.
Guerra só se justifica quando põe termo à guerra.
Guerra não acaba mesmo quando acaba.
Guerra é «cá».
Guerra é a resposta.
Guerra é aqui.
Guerra é isto.
Guerra é agora.
Guerra somos NÓS. War is US.

Título original: «War Stories». Poema publicado pela primeira vez no Philadelphia Inquirer, segunda-feira, 31 de Março de 2003, depois da invasão do Iraque pelas tropas dos E.U.A. Lido a duas vozes, pelo autor e pelo tradutor, a encerrar a leitura no TAGV. © Charles Bernstein © Tradução: MP (19-08-2004)

Beckett no TAGV (15-25 Maio 2006) 1

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Fotos da exposição «Samuel Beckett (1906-1989)»: MP (24-05-2006)

Beckett no TAGV (15-25 Maio 2006) 2

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Fotos da exposição «Samuel Beckett (1906-1989)»: MP (24-05-2006)

Beckett no TAGV (15-25 Maio 2006) 3

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Com «Beckett no TAGV (15-25 Maio 2006)», o Teatro Académico de Gil Vicente pôs em prática um modelo de programação que gostaria de reforçar no futuro. Isto significa aliar a programação com a produção própria, em iniciativas originais, multidisciplinares e com forte coerência temática. Concebida para assinalar o centenário do nascimento de Samuel Beckett (1906-1989), a programação do ciclo «Beckett no TAGV» incluiu um conjunto de dezanove filmes, três peças de teatro, e ainda uma mostra bibliográfica, duas exposições, uma conferência, uma mesa-redonda, uma leitura e duas peças para rádio. Uma das peças, Vai e Vem, foi um exercício colectivo de produção do TAGV, a partir de uma tradução feita no âmbito do Curso de Especialização em Tradução da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Foram apresentadas ainda mais três traduções inéditas: do texto em prosa «Stirrings Still», e das peças radiofónicas «Rough for Radio I» e «Words and Music». Uma das exposições/instalações («Roaring Machine», de Emanuel Brás e Luís Quintais) foi especificamente concebida para a ocasião. Esta iniciativa proporcionou formas de colaboração com outras instituições - como a Embaixada da República da Irlanda, a Rádio Universidade de Coimbra e a Biblioteca da Universidade de Coimbra - e com especialistas na obra de Samuel Beckett. Foi possível conhecer grande parte da sua obra, incluindo a recepção do seu teatro em Portugal. Também sob este aspecto, o ciclo «Beckett no TAGV» pode ser tomado como um modelo de programação adequado ao TAGV enquanto instituição universitária, capaz não só de celebrar e dar a conhecer a obra de um autor, mas de mobilizar um conjunto de saberes científicos e artísticos na apropriação dessa obra. A generosa colaboração externa recebida para pôr de pé esta iniciativa demonstrou o apelo e o desafio que a obra de Beckett continua a conter, e também as grandes expectativas em relação ao papel do TAGV.
MP

Foto do cartaz de Vai e Vem, peça de Samuel Beckett apresentada a 19 de Maio de 2006. Intérpretes: Alexandra Silva, Paula Santos e Helena Faria.

Protocolo TAGV-Grupos e Cursos de Teatro (27 Março 2006)

[Arquivo-TAGV]

Teatro de Marionetas do Porto, Os Encantos de Medeia, de António José da Silva. Encenação de João Paulo Seara Cardoso. Foto © TMP.


A peça com que assinalamos este Dia Mundial do Teatro, Os Encantos de Medeia, de António José da Silva, pelo Teatro de Marionetas do Porto, é uma celebração renovada da magia do teatro. O jogo subtil entre manipulador e marioneta, e a sugestiva teatralidade dos objectos conseguem construir um dupla leitura do texto cénico: por um lado, vemos o texto original, com todos marcadores da linguagem burlesca e satírica do género e da época; por outro, a peça é trazida para fora desses limites e interpela poeticamente os dilemas do presente, saindo claramente das fronteiras tipificadas no género e nas personagens de partida, numa tensão entre o cómico e o poético. Transformando as marionetas em objectos cinéticos, a encenação de João Paulo Seara Cardoso representa a teatralidade do teatro nos seus múltiplos signos e códigos.

Quando vemos uma peça em cena, especialmente se o espectáculo tem o grau de imaginação cénica e de qualidade técnica d’ Os Encantos de Medeia, torna-se mais claro o sentido colectivo da nossa actividade. Todas as tarefas administrativas, técnicas, de produção, de divulgação, de acolhimento do público, etc., convergiram para esse fim. O conjunto de gestos e diligências que é posto em marcha, de cada vez que produzimos ou programamos, visa esse objectivo último: a comunicação que se estabelece entre artistas e público através da linguagem cénica específica da obra. No fundo, aquilo que se poderia referir como criar as condições para uma prática artística. Produzir e programar passa a ser então juntar tempo e lugar, e marcar aquele ponto de encontro.

Teatro de Marionetas do Porto, Os Encantos de Medeia, de António José da Silva. Encenação de João Paulo Seara Cardoso. Foto © TMP.


No dia em que se celebra a arte do teatro, vem especialmente a propósito uma breve referência aos tempos e lugares do teatro no TAGV. O teatro tem ocupado um lugar permanente na programação dos últimos anos. Companhias estabelecidas e companhias emergentes (locais, nacionais ou internacionais), têm passado pelo palco do TAGV, seja em grandes produções, em projectos pontuais, em espectáculos para crianças ou em festivais de teatro, como o festival de teatro universitário ou os projectos da cena lusófona. O teatro constitui, além do mais, um espaço público de reflexão crítica sobre o presente, e de conhecimento da sociedade e do indivíduo. Parece por isso natural que os recursos do TAGV sirvam também de incentivo aos artistas que, localmente, fazem por manter viva a imaginação e a comunicação através dos gestos, dos movimentos, das palavras e do corpo, interpelando o real com o jogo do teatro.

Entendo que a plena realização da missão de promoção cultural que está atribuída ao TAGV implica, entre outras coisas, uma programação atenta à criação local e atenta à função educativa das práticas artísticas. Apesar das actuais limitações na capacidade de produção própria — que impedem, por exemplo, a encomenda directa de obras, e restringem o número de festivais —, o TAGV propõe-se valorizar a criação teatral e performativa local, universitária e extra-universitária, na sua programação. Propõe-se também educar mais público para o teatro. É precisamente esta intenção que se concretiza no protocolo de colaboração que é hoje assinado, originalmente concebido pelo Prof. João Maria André, anterior director do Teatro, e que tenho a honra de pôr em prática.

Teatro de Marionetas do Porto, Os Encantos de Medeia, de António José da Silva. Encenação de João Paulo Seara Cardoso. Foto © TMP.


São conhecidas as dificuldades de trabalho de alguns dos grupos e associações signatárias, designadamente no acesso a espaços e equipamento que proporcionem as condições adequadas de apresentação das suas encenações, ou que permitam dar maior alcance público ao trabalho de criação e experimentação desenvolvido. Aprender mais e interrogar o mundo através da arte significa também ter a oportunidade de experimentar e criar sem os constrangimentos das leis do mercado. Como interface da Universidade de Coimbra no domínio das artes do espectáculo, o TAGV deve programar com pleno sentido da dimensão formativa da arte performativa. O crescimento intelectual e artístico, do público e dos criadores, depende do exercício constante. A possibilidade de aumentar a qualidade dramatúrgica, cenográfica e de interpretação depende de uma actividade continuada e de um processo contínuo de crítica e de recepção pública. Sem esta actividade constante dificilmente se criam as condições de produção e recepção para consolidação das práticas, para invenção de formas, para a qualidade da escrita e do espectáculo, e, em última análise, para conhecer melhor o mundo em que vivemos.

Infelizmente, a situação financeira do TAGV é hoje ainda mais precária do que há um ano atrás. Nem todos os responsáveis políticos reconhecem a importância de um serviço público digno desse nome no domínio das artes do espectáculo. Isso não nos impedirá, todavia, de continuar a tentar definir melhor as várias dimensões de intervenção de uma instituição desta natureza, e sobretudo de tentar concretizar melhor essa definição. O TAGV não é, nunca foi, e não vai ser mera sala para arrendar ao melhor preço, ou mero comprador de entretenimento. Sendo apenas um primeiro e pequeno passo, o compromisso que assumimos neste protocolo ajuda-nos a traçar mais claramente, e de forma pública, um princípio orientador da nossa actividade.

Teatro de Marionetas do Porto, Os Encantos de Medeia, de António José da Silva. Encenação de João Paulo Seara Cardoso. Foto © TMP.


Outra das dimensões de intervenção do TAGV que temos estado a tentar definir melhor é a dimensão educativa: o conhecimento e fruição das práticas artísticas deve ser parte integrante da educação de todos os indivíduos. Esta possibilidade de conhecer e fruir deve estar solidamente integrada nos currículos de ensino, em todos os graus, e deve poder tornar-se uma forma quotidiana de experimentar a vida e torná-la mais humana. Criar condições para que seja possível conhecer a vasta paisagem das práticas artísticas contemporâneas deve ser por isso um dos princípios orientadores dos actos de programação.

Como instituição universitária, o TAGV tem nesse domínio uma responsabilidade acrescida. Aumentar as possibilidades de formação dos estudantes de teatro, tornando mais acessível o ingresso nos espectáculos programados é um pequeno contributo nesse campo. Recordo aliás que essa tem sido, em geral, a política de preços do TAGV, com intenção de garantir um acesso socialmente mais alargado. Servir o público é também formar o público, isto é, dar-lhe a possibilidade de conhecer as múltiplas linguagens das artes, e resistir à massificação do gosto e do pensamento, favorecendo a autonomia crítica e a emancipação individual.

Teatro de Marionetas do Porto, Os Encantos de Medeia, de António José da Silva. Encenação de João Paulo Seara Cardoso. Foto © TMP.


Espera-se que este protocolo de colaboração permita cimentar as relações entre quem faz e quem vê, entre quem vê e quem estuda, entre quem estuda e quem faz, isto é, entre produtores e receptores na cidade de Coimbra. «Alimentar a fruição com o conhecimento», «desenvolver instrumentos de criação e de crítica», «experimentar formas de dizer e compreender o mundo», «fortalecer os laços entre os que assim comunicam» — são talvez fórmulas demasiado abstractas para descrever o exercício de imaginação que o teatro sempre nos propõe. Mais claro seria talvez dizer que o TAGV encarna hoje, Dia Mundial do Teatro, uma personagem paradoxal: a personagem de um Teatro sem mecenas que se faz mecenas do teatro. As portas abrem-se: actores e público marcam encontro à boca de cena. A teia agita-se e o pano sobe.

Coimbra, 27 de Março de 2006
Manuel Portela