31 maio 2007

Andrew Bird 1 (30 Maio 2007)

[Arquivo-TAGV]


Andrew Bird no TAGV. Camarins. 30 Maio 2007.
Fotos de mArio henriques.


Andrew Bird no TAGV, 30 Maio 2007. Fotos de José Balsinha.

28 maio 2007

Pequenos Estragos (26 Maio 2007)

[Arquivo-TAGV]

Para além de inúmeras acções poéticas, Alberto Pimenta é autor dos livros Obra Quase Incompleta (1990; antologia da sua obra anterior), Divina Multi(co)média (1991), IV de Ouros (1992), Tomai Isto É O Meu Porco (1992), Santa Copla Carnal (1993), O Terno Feminino (1994), Discurso sobre o Filho-de-Deus (1995), A Sombra do Frio na Parede (1996), Repetição do Caos (1997), As Moscas de Pégaso (1998), Ainda Há Muito para Fazer (1999), Elles: Um Epistolado (1999, com Ana Hatherly), Ode Pós-Moderna (2000), Grande Colecção de Inverno 2001-2002 (2001), Tijoleira (2002), Deusas Ex-Machina (2004), Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta (2005), Imitação de Ovídio (2006) e Indulgência Plenária (2007). Autor também de dois livros de ensaio: A Magia que Tira os Pecados do Mundo (1995) e O Silêncio dos Poetas (1978; nova edição, 2003).

Conhecer o mundo no corpo é, porventura, uma descrição aproximada da poética de Alberto Pimenta. Conhecer o mundo no corpo é conhecê-lo através das portas dos sentidos, mas também através da materialidade dos signos enquanto extensão da carne que pensa. É através do ritmo da palavra que a sua obra enfrenta a impureza da linguagem e tudo aquilo que a língua representa de sujeição do falante à categorização ideológica do real. Ao corroer os dispositivos discursivos e semânticos da língua através de um elaborado trabalho rítmico sobre a palavra, os seus poemas e acções poéticas põem a nu os mecanismos que desapropriam o sujeito dessa possibilidade de conhecer e experimentar o mundo no corpo. Esta confrontação do real na linguagem permiti-lhe, ao mesmo tempo, o mais alto lirismo no retrato da condição humana como condição erótica e a mais profunda revolta contra a mentira da existência vendida a crédito pelos donos da terra.

A sua capacidade de invenção formal na confrontação da palavra e do corpo com as suas próprias limitações pode ser apreciada numa extensa obra de poesia e de acções poéticas. Das formas poéticas clássicas ao poema sonoro, à performance, ao videopoema, ao romance, à autobiografia e ao ensaio literário, não há praticamente género que Alberto Pimenta não tenha praticado. Esta versatilidade formal, caracterizada por amarga derrisão irónica, resulta frequentemente da colagem de múltiplos discursos, das vozes do Estado à propaganda publicitária. Os seus poemas captam as formações discursivas que procuram estruturar o pensamento dos indivíduos na sociedade burocrática e tecnocrática, cuja reprodução e expansão depende de um fluxo constante de mensagens. É neste espaço saturado de signos, de expropriação da subjectividade e de alienação que os textos se colocam como espelho do mundo. Através de uma retórica simultaneamente sonora, visual e performativa — servida por rigorosa notação rítmica, gráfica e cénica — os textos e acções tornam-se partituras para fazer poesia. Metapoético e auto-referencial, o acto poético revela-se então como uma das formas do próprio movimento amoroso no encontro com o real: «E o vivo e puro amor de que sou feito/ Como a matéria simples busca a forma» (Luís de Camões).




Na primeira parte de «Pequenos Estragos», Alberto Pimenta contestou, mais uma vez, a definição aristotélica de poesia. Em pouco mais de meia hora tentou retirar a epopeia e a tragédia da prateleira da «poesia», vendo-as como formas que inculcam no sujeito a ordem social, através da figura do herói ou do código de crime e castigo. Na resposta à sua própria interrogação sobre a natureza do acto poético, põe a possibilidade de uma poesia fora da usura do tempo, isto é, como experiência plena do mundo, livre da troca económica e do empobrecimento tecnocrático do progresso que produz o real como passado, presente e futuro. A prosa seria a linguagem transformada em dispositivo de violência, destinado a destruir uma consciência linguística e sensorial do mundo e a sujeitá-la à moral do desfecho. Mas até mesmo à poesia faltaria poesia. De caminho, varre Homero, as tragédias gregas, incluindo Fedra e Édipo, a Divina Comédia... Do outro lado, como exemplos de poesia, coloca Sapho, Anacreonte, Alcman, Ovídio, François Villon... Nesta hipótese de definição de poesia, já não seriam o ritmo fónico ou gráfico ou semântico só por si o sinal da natureza poética do acto, mas antes a afirmação libertária do instinto de vida, a resistência do sujeito à linguagem que o produz e a revolta contra a opressão social. Que a redefinição pimentiana tenha de tomar a forma que contesta - uma aula de quem nos interroga se sabemos o que ensinamos quando ensinamos poesia - revela, de certo modo, o fracasso a que o empreendimento se condena desde o início.


Alberto Pimenta no TAGV, Pequenos Estragos (26 Maio 2007). Primeira leitura pública do poema inédito Indulgência Plenária (2007, no prelo), antecedida do poema Marthiya de Abdel Hamid (2005). Fotos de mArio henriques.

Os poemas que leu a seguir - Marthiya de Abdel Hamid (2005) e Indulgência Plenária (2007) - mostram bem a insuficiência da anti-definição de poesia que ensaiou na primeira parte. Tal como uma parte substancial da poesia pós-pessoana não-aristotélica, também a poesia de Alberto Pimenta se alimenta da pergunta «O que é ser eu?». Que surge, no entanto, complicada com uma outra: «O que é ser não-eu?». Mas este «não-eu» não resulta da mera divisão heteronímica que multiplica o sujeito dentro do seu acto ilocutório lírico. Resulta, antes, da observação social e do recenseamento dos discursos que reproduzem os papéis sociais dentro dos indivíduos, isto é, da violência que a linguagem exerce sobre eles. Por isso as vozes e os pontos de vista se desdobram e se multiplicam, expondo a disparidade entre os discursos e as experiências que os discursos tentam representar. Ao contar o bombardeamento de Bagdad e a guerra do Iraque pela voz de um iraquiano, Pimenta expõe a iniquidade contida nas representações que omitem a voz do outro. O mesmo se poderia dizer dos discursos através dos quais se justifica a morte infligida de Gisberta Salce no segundo poema. De certo modo, o que Pimenta sempre tentou fazer foram anti-representações, tornando político o acto poético. Em ambos os poemas é bem audível na retórica prosódica e imagética a energia lírica das vozes, e a celebração do corpo como modo de comunhão com a beleza da terra. Em ambos é bem perceptível também a impossibilidade de escapar à temporalidade contida na linguagem enquanto acto intencional no mundo, ainda quando se tenta entrar nesse presente contínuo e acertar na mosca do sublime poético.
MP

25 maio 2007

Murcof ao vivo no TAGV [Ciclo Senses, 24 Maio 2007]

[Arquivo-Tagv]


«Há sombras, fendas de cinzento, minúsculas gretas, vagas de escuro sucedendo-se umas às outras. Pode ser um quarto, mas não há luz; uma paisagem a perder de vista, mas sem claridade; uma cidade adormecida, mas irremediavelmente de olhos vendados. E no entanto esta música move-se, tacteia, cambaleia pelas artérias sombrias que escolheu transitar. Esta é a música do mexicano Fernando Corona (…) nome artístico, Murcof.


Daqui não há fugas. Há sons de piano ao longe, reverberações, orquestrações paradas no tempo, à volta das quais pairam teias de aranha e há um crime misterioso que ninguém quer resolver. A música é instrumental: podia ser a banda sonora de um policial negro. Mas é majestosa demais para o ser. De vez em quando um sino recorda-nos que há um sentido de urgência que é concreto, palpável, mas à volta há memórias, abstracção, corpos digitais em miniatura pedindo auxílio.


Murcof. TAGV. 24.05.2007. Fotos: mArio henriques.


À primeira parece claustrofóbico. Ouve-se duas e três vezes e há fissuras que auguram luz. À quarta, um esboço de claridade. À quinta ofusca. Descobre-se matéria ambiental vogando pelo espaço, cruzando-se com sinfonia em miniatura. Agora parece haver um maior dinamismo rítmico, mais rumores ao longe e mais ao longe ainda uma harpa.

Não há passado, nem presente, nem futuro. Esta música respira em suspensão. Há apenas vestígios, indícios, tonalidades, texturas que vão e vêm sem deixarem rasto. Corona deu-lhes nomes como “Recuerdos”, Reflexo”, “Rostro”, “Rios” e “Caminos”».

Vítor Belanciano, Suplemento Y, Público

23 maio 2007

Malgré Nous, Nous Étions Là (22 Maio 2007)

[Arquivo-TAGV]





Paulo Ribeiro e Leonor Keil. Companhia Paulo Ribeiro, Malgré Nous, Nous Étions Là, TAGV, 22 de Maio 2007. Fotos de Celestino Gomes.

Malgré Nous, Nous Étions Là (22 Maio 2007)

[Crítica-TAGV]

Paulo Ribeiro e Leonor Keil. Companhia Paulo Ribeiro, Malgré nous, nous étions là, TAGV, 22 Maio 2007. Foto de mArio henriques.

A impressão mais imediata que nos deixa o espectáculo da Companhia Paulo Ribeiro, Malgré Nous, Nous Étions Là, é de surpresa. Tudo é surpreendente. E desarmante. É um espectáculo tão desarmante, tão desprovido de artificialismo, que é impossível não nos entregarmos desde os primeiros momentos, desde a primeira vez que Paulo Ribeiro se dirige ao público, desde os primeiros passos que Paulo Ribeiro e Leonor Keil ensaiam ao redor do palco.
Dizer que se trata de uma peça marcada por enorme simplicidade não significa dizer que é simplista, ou elementar, a sua proposta. Pelo contrário, a ironia que mais do que uma vez se explicita é como que a margem visível da inteligente complexidade que percorre a obra, que, sendo sempre o que parece, é sempre mais do que aparenta. E é esta dualidade, a de ser o que mostra mas simultaneamente ser outra coisa mais, que torna a coreografia verdadeiramente extraordinária.

Começa por se apresentar como uma espécie de pausa para balanço, um momento reflexivo em relação ao ideário coreográfico do autor, mas é uma proposta arrojada e inovadora, que explora não tanto os limites, como as potencialidades de um determinado vocabulário, nomeadamente face à inevitabilidade do envelhecimento do corpo.

Além disso apresenta-se como um momento de intimidade, quase que de exposição, mais uma vez desprovida de cinismo. Mas é sempre, et pour cause, uma intimidade encenada, coreografada. E se esse exercício de exposição é sempre sincero, não deve ser tomado à letra. Digamos que é aquela parte da intimidade que pode ser construída, montada, levada à cena.

Ainda noutro aspecto Paulo Ribeiro consegue uma coisa extremamente subtil e por isso tão difícil: mostrar uma cumplicidade entre os dois bailarinos, que quase nos convence (ou que nos convence por inteiro se aceitarmos jogar o jogo da ilusão que é sempre o espectáculo) de que há uma camada de informalidade na execução. E é tão perfeita essa ilusão que não se conseguem vislumbrar as costuras da camada de rigor, da arquitectura exacta e racional que está na base do projecto coreográfico.

Em suma, surpresa, humor, intimidade, mas também arrojo e rigor, parecem ser as notas dominantes de um espectáculo terno e inesquecível, em que uma aparente despretensão nunca esconde a razão essencial desta coreografia, qual seja a de levar à cena uma irresistível vontade de dançar.

miguel b. [22-05-2007]

22 maio 2007

Voar no chão (22 Maio 2007)

[Arquivo-TAGV]


A peça começa como uma conferência sobre dança. Ou antes, como uma paródia de uma conferência sobre dança. Uma duplicidade que se repete em todos os quadros coreográficos: que se mostram a ser construídos enquanto dança e, ao mesmo tempo, como paródia da dança que constroem. O que Paulo Ribeiro e Leonor Keil fazem, de um modo simultaneamente poético e auto-derrisório, é expor a motricidade do próprio movimento e a carnalidade do corpo que sustenta esse movimento. Mais ainda do que isso: expõem o acto coreográfico como movimento do pensamento e do corpo que pensa esse pensamento. Daí os recomeços, as hesitações, os gestos falhados, os movimentos interrompidos, as suturas que ligam cada um dos quadros. Os textos de Gonçalo M. Tavares funcionam, no meio da paródia do discurso explicativo da dança contemporânea, como correlato dos momentos em que a sintaxe de movimentos corporais consegue articular frases coreográficas completas no meio de outros fragmentos que são tentativas de dança.




A dança torna-se então numa dança sobre a dança, mas sem que seja possível, mesmo a esse nível, articular uma narrativa. Também os movimentos reflexivos se tornam movimentos semi-falhados em segundo grau: conscientes da sua insuficiência enquanto grafia de movimentos. A distância entre o discurso sobre a dança e a dança, parodiada na micro-conferência final sobre William Forsythe e o movimento do cotovelo, sinaliza um dos aspectos centrais desta peça: o movimento excede sempre, na sua concretude, a coreografia enquanto dispositivo de coesão e coerência formal. O movimento como ideia mostra-se através da tendência para se autonomizar e perder toda a referência externa. Até mesmo as evocações contidas nas posturas corporais ou nos passos deliberadamente mal-ensaiados se tornam abstractos na figuração de emoções ou de memórias. Conseguir o máximo de abstracção com o máximo de presença seria talvez um modo possível de descrever esta peça, singular na sua redefinição da forma do dueto e das suas associações simbólicas.

Paulo Ribeiro e Leonor Keil. Companhia Paulo Ribeiro, Malgré nous, nous étions là, TAGV, 22 Maio 2007. Fotos de mArio henriques.

A projecção da dança no chão como dança aérea na tela contribui para rarefazer a intensidade emocional induzida pela associação da música de Bernardo Sassetti à atracção dos corpos. O sublime da alma que cresce sem chegar a morrer é dado como efeito especial que rematerializa os movimentos dos corpos em imagens dos movimentos dos corpos, oferecendo ao/à espectador/a o ponto de vista aéreo que lhe permite ver, também a ele/a, a dobrar. O objecto e, em simultâneo, a imagem transfigurada do objecto. O desdobramento não está apenas no modo reiteradamente interrompido e semi-frustrado de os bailarinos se orbitarem mutuamente, mas também nos olhos das câmaras que, a partir do chão ou do ar, projectam as suas imagens sobre a tela ou sobre as imagens da tela. No penúltimo quadro, antes da projecção dos movimentos dos nadadores e das oscilações aquáticas causadas por esses movimentos, os dois corpos dançam uma morna em câmara lenta, como se os próprios corpos fossem tocados por um modo particular da imagem do seu movimento. Também aqui o pas-de-deux se desconstrói, decompondo os seus passos como quem atira livros para o chão.
MP

21 maio 2007

As paisagens sonoras desoladas e evocativas de Murcof

[Notícia-Tagv]

Murcof. Foto © Static Discos

Murcof, uma ideia desenvolvida pelo mexicano Fernando Corona, é mais um projecto a acrescentar à lista que o Ciclo Senses tem dado a conhecer no TAGV. Influenciado pela música clássica e pelo minimalismo electrónico, Murcof trabalha samples orquestrais, reconfigurando as fontes sonoras em novas texturas e fundindo-as com sons microscópicos e ritmos repetitivos. Se o álbum Martes (2002) era uma experiência iniciática em que o autor mergulhava em pleno no universo das electrónicas minimalistas, recontextualizando a obra de clássicos contemporâneos como Pärt, Ligeti ou Górecki, a partir de estruturas minimais electrónicas, o seu sucessor, Remembranza (2005), seguiu-lhe os passos, revelando um território sonoro abstracto marcado por uma harmoniosa combinação entre orquestrações clássicas e técnicas digitais.

Murcof. Foto © Randomorb

Os sons microscópicos e ritmos repetitivos patentes ao longo da obra criada por Corona são peças-chave de um todo de texturas atmosféricas e contornos abstractos – o que coloca simultaneamente em evidência a qualidade das peças electro-minimais projectadas por criadores da América Central e do Sul – que se confirma como banda sonora introspectiva de enorme intensidade dramática, preenchida por sentimentos obscuros, memórias luminosas, atmosferas densas e paisagens contemplativas. Para confirmar ao vivo quinta-feira dia 24 de Maio.
PDS

18 maio 2007

Sobreviver à escrita (17 Maio 2007)

[Arquivo-TAGV]


Dois Rostos
1
Seguindo a tua voz conhecia virtudes.
Regressava à infância, aos sinais do tojo luminoso.
A vida no campo não era o átrio da fala.

E eu era essa criança que tropeça nos textos
Perdido no bafo quente das azinhagas mudas
Onde o fragor do sino contava as horas mortas.

A tua voz pensante em jardins marinhos
Não sabia do medo que vinha atrás de mim
Como um gigante trôpego fugindo aos próprios sonhos.

E o sol é o mestre, dizia o meu avô
Antes do vinho se atravessar sem perdão
No seu caminho.

Andámos pelo meio das frases. Eu entre as urtigas,
Tu com a tua voz em quinta de arredores.
Cada um com o seu lábio feroz. A sua sina.

E a fala arde em duas bocas escassas.

Na tua há um reflexo mental que dá à flor
O ser de natureza essência
Ser de ciência pura e que o olhar ungia.

Na minha há uma nora puxada, palavra por palavra,
Pelo animal do sexo que em cama de erva
Despeja o suor o esperma o prazer do dia

Mas o sol é o mestre e curva o seu ardor
No silêncio do brejo oculto pelo pinhal
A mão inflecte o gesto anterior
Na fronte tensa, os raios cintilam na espessa
Escuridão que geme em cima
E noutra boca.

Que silenciosa culpa,
Ambos somos discípulos de um deus embriagado
E que nada poupa.
As belas uvas, o receio de comê-las.
O fruto tenro e ágil em dedos destemidos.

A minha língua solta.


Armando Silva Carvalho, O Que Foi Passado a Limpo: 1965-2005, Lisboa: Assírio e Alvim, 2007, pp. 502-503.


Como é que se fala sobre este texto? De onde vieram estas palavras? Estas imagens? Como se encadearam? Foi a partir destas perguntas, relativas a um excerto do poema «Dois Rostos», que Armando Silva Carvalho começou a falar do seu processo criativo. Referindo-se à origem particular daquele texto, originalmente publicado na obra Sol a Sol (2005), salientou a relação com a poesia de Fiama Hasse Pais Brandão, directamente citada e interpelada naquele livro. De resto, segundo Armando Silva Carvalho, Fiama seria quem, na poesia portuguesa contemporânea, mais longe levou a reflexão sobre o discurso poético depois de Fernando Pessoa. Na leitura que fez do seu próprio texto, Armando Silva Carvalho descodificou as referências à infância como referências imaginárias às infâncias de ambos, aludindo às respectivas origens sociais e à experiência de conhecimento do mundo associada a essas origens. Interrogado sobre a recorrência de certas palavras e imagens, naquele e noutros poemas, referiu-se à memória da linguagem e da experiência, ao conhecimento erótico do real na sensorialidade que liga palavras e experiência. Algumas palavras têm, na sua escrita, essa capacidade dinâmica de electrizar as outras, resultando em imagens carregadas de energia. O dinamismo criado pela improbabilidade das metáforas constitui um dos eixos centrais da sua pesquisa verbal, que partilha com outros autores da Poesia 61.

Armando Silva Carvalho no TAGV, Máquinas de Escrever 5, 17 Maio 2007. Fotos de mArio henriques.

Armando Silva Carvalho falou também da necessidade de recolhimento e da distância necessária entre o momento doloroso ou depressivo e o momento em que se torna possível passar ao acto de escrita. Esta distância é, de alguma maneira, o que está contido no triplo sentido do título da antologia da sua obra. «O que foi passado a limpo» seria ao mesmo tempo o passado, limpo da vertigem visceral do tempo vivido enquanto tempo presente; o acontecido passado a escrita, que transfigura o instante do encontro com o real na matéria corporal das palavras; e a escrita, ela própria, passada a limpo, isto é, a descarga cerebral da invenção poética transformada em técnica de encontrar imagens e ritmos. Ao referir-se ao «verso», Armando Silva Carvalho fá-lo justamente para sublinhar a dimensão material da arte verbal, sujeita a actos de revisão e reescrita. Por outro lado, na compulsão que desencadeia o acto como necessidade física, a escrita serve também para sobreviver às pulsões de morte. Interrogado sobre a continuação, sobre o motivo para continuar a procurar o verso, Armando Silva Carvalho referiu o seu desejo presente de encontrar uma poesia política capaz de dar conta do mundo actual e da sua ininterpretabilidade. Nesta procura está contida a procura que torna possível ao sujeito sobreviver à escrita. A sua entrega à pulsão de vida que a excede e que há-de ser, ainda mais uma vez, passada a limpo.
MP

13 maio 2007

O cinema como arte óptica (14-15-16 Maio 2007)

[Arquivo-TAGV]


Vendo os filmes de Norman McLaren percebe-se que a história do cinema poderia ter sido diferente se o código realista e naturalista não tivesse sido imediatamente remediado do romance e do teatro para o cinema como código dominante. É evidente, por exemplo, a ligação da sua obra com a crítica dos modos de representação levada a cabo pelos pintores modernistas. Vistas a partir da tecnologia digital actual, as suas formas revelam não só a capacidade de análise da forma, do movimento e do som, mas também uma aguda consciência da natureza abstracta da significação e da materialidade fílmica. Uma das características da sua animação reside nessa poética fílmica auto-referencial. Ao designar a sua própria materialidade, os seus filmes expõem a condição objectiva da imagem, mas também a sua condição perceptual. A dimensão cinética e óptica da arte cinematográfica depende do encontro perceptual entre a luz e o olho induzido pelo movimento da película.


A animação poética de formas semi-abstractas, em sincronia com a música, constitui uma das características fundamentais do estilo de animação de Norman McLaren, que procura fazer do cinema um ponto de intersecção entre a pintura e a música, transpostas para o movimento das ondas de luz e de som. O trabalho de redução da forma e da cor a dois ou três elementos mínimos, que depois são desenvolvidos numa série de variações combinatórias, é outra das características dos primeiros filmes que se mantém ao longo de toda a sua obra. A natureza combinatória e minimalista da sua arte animada aproxima-a de uma das principais tendências da arte moderna em todos os domínios materiais: a investigação da natureza dos elementos materiais mínimos que compõem as formas. Trata-se de encontrar as unidades elementares de uma linguagem e descobrir o que torna possível fazer sentido, isto é, passar do nível gráfico e cinético dos traços sobre a película para o nível simbólico dos significados e das emoções tornadas auto-conscientes.


O carácter óptico do seu cinema é visível na rápida sugestão de formas e metamorfoses, brincando com os padrões perceptivos do olho humano: muitos filmes começam como padrões abstractos de linhas — linhas rectas e linhas curvas — que se vão compondo, multiplicando, unindo e desfazendo. Neste processo de composição e separação são muitas vezes sugeridas certas representações — estrelas, riscas, fogo-de-artifício, laços, bolas, flores, pássaros, figuras humanas ou partes de figuras humanas (pés, mãos, olhos, corações), etc.— que, no entanto, regressam quase sempre à sua condição formal e abstracta, resistindo na cor e na forma ao efeito realista. O efeito de figuração ou de abstracção é ambivalente: o movimento na direcção de formas reconhecíveis como representações desencadeia muitas vezes o movimento contrário, isto é, o movimento na direcção de formas que se representam a si mesmas. Esta tensão entre abstracção e figuração é por vezes cíclica dentro de cada filme, como acontece em Loops (1940), em que os laços vão sugerindo uma série de outras formas, às quais atribuímos outras tantas referências, para regressarem de novo à sua condição de significante vazio.


A visão é um processo activo de busca de padrões que activam recordações (individuais, culturais) associadas a determinados objectos, destacando-os e integrando-os numa percepção. O olho é condicionado pela sua biologia e motivado por representações anteriores na percepção do mundo: são elas que condicionam a sua cegueira ou a sua acuidade na organização da luz e dos objectos. A padronização das imagens em relações fundo/figura, ou a antropomorfização dos objectos, em particular sob a forma de caras e corpos, ou ainda a persistência da imagem retiniana são algumas das características documentadas na actividade do cortex visual. É precisamente com essas propriedades da visão, no jogo de sugestão de formas descontínuas e intermitentes, combinadas com os efeitos emotivos dos sons, que McLaren trabalha. A textura simbólica e representativa dos seus filmes é apresentada como um efeito da materialidade óptica do cinema, que a música e os sons enchem de emoção. Com McLaren a animação como arte do movimento torna-se auto-referencial, isto é, uma arte da percepção do movimento na dança das formas que liga os olhos e os ouvidos através do cinema. Uma ilusão mágica que liberta o ser humano, por instantes, da sua condição audiovisual.
MP

Norman McLaren (1914-1987), Animated Motion/ Le mouvement image par image (1976-1978). Norman McLaren no TAGV, 14-15-16 Maio 2007.

10 maio 2007

A referencialidade na música (9 Maio 2007)

[Arquivo-TAGV]



Dando início a um novo ciclo de recitais e concertos («A Cor do Som»), que continuará na próxima temporada, o TAGV acolheu o pianista José Eduardo Martins, que interpretou as «Sonatas Bíblicas»(1700), de Johann Kuhnau. Esta terá sido provavelmente a primeira interpretação integral daquelas sonatas em Coimbra. Sem pôr em causa a corrente de interpretação da música antiga em instrumentos de época, José Eduardo Martins menciona a significativa tradição de interpretação ao piano de obras para cravo, inserindo aí a sua opção de ler ao piano uma obra escrita originalmente para cravo, clavicórdio ou órgão. Cita designadamente a frequente intrepretação ao piano do repertório para cravo dos grandes compositores barrocos como François Couperin, Jean-Philippe Rameau, Domenico Scarlatti, Johann Sebastian Bach, Antonio Soler ou Carlos Seixas. É de facto possível argumentar, como acontece, por exemplo, nas interpretações de Bach por Glenn Gould, ou de Scarlatti por Anne Queffélec, que a leitura ao piano amplifica certas qualidades composicionais originais e, não raramente, actualiza o seu potencial de modo a revelar novas dimensões. Não se trata portanto de uma mera transposição tímbrica, que desvirtuaria a intenção e a forma originais. Trata-se, antes de mais, de um problema de interpretação e de leitura, que cabe ao intérprete resolver.



José Eduardo Martins (piano), «Sonatas Bíblicas»(1700), de Johann Kuhnau (1660-1722), TAGV, 9 Maio 2007. Recital comentado por José Maria Pedrosa Cardoso. Fotos de Mário Henriques.

O problema da leitura ganha, aliás, uma dimensão particular nas obras instrumentais programáticas ou descritivas, como é o caso. Na medida em que se propõe referir ou representar um conteúdo extramusical, a música programática coloca o problema da referencialidade dos signos musicais. Em que medida é possível representar acções, situações, imagens, ideias, emoções? Por outras palavras, como se consegue dar ao discurso instrumental uma função descritiva, narrativa e dramática? Que processos na fantasia do intérprete e do ouvinte são estimulados por determinadas descrições verbais nos títulos das peças? Esta capacidade descritiva e narrativa depende de um vocabulário de temas e ritmos, de algum modo, pré-constituído e lexicalizado na tradição composicional. A figuração musical de impressões sonoras, como acontece por exemplo com o canto dos pássaros ou com a água ou com a tempestade na música de Antonio Vivaldi, é talvez a possibilidade descritiva mais facilmente figurável: aquela em que o instrumento assume uma função imitativa. A figuração de impressões visuais, pela sua natureza sinestésica, revela já a natureza abstracta e convencional da simbologia musical. O mesmo se poderá dizer da figuração de sentimentos, emoções e atmosferas.

A remediação musical dos episódios bíblicos escolhidos, feita através de danças, recitativos, corais luteranos, fugatos e fugas, evidencia o salto conceptual entre a estrutura abstracta de repetição e variação que caracteriza a combinatória de sons e os sentimentos ou estados de espírito que pretendem referir ou evocar. José Eduardo Martins designa as «Sonatas Bíblicas» como uma «verdadeira enciclopédia de sentimentos». Ainda que o intérprete e o ouvinte não possam deixar de atender aos títulos das sonatas e das frases que, na partitura, identificam as diferentes cenas ou momentos narrativos, eles percebem também a arbitrariedade dos signos da simbologia musical programática. Mesmo admitindo alguma espécie de universalidade na equivalência entre andamento lento e tristeza, ou entre andamento rápido e alegria; entre aumento e diminuição de intensidade sonora e aumento e diminuição de intensidade emotiva; entre sons fortes e sons suaves e estados de alma ou acções; entre sons agudos e sons graves e variações de luz e de cor; a natureza abstracta do signo musical, como a natureza abstracta das categorias linguísticas, é o que, em última análise, aquele salto entre a impressão sensorial produzida pela música e o conteúdo conceptual e emocional que a fantasia lhe associa revela. Ou seja, é o programa que cria o código de interpretação e a grelha de leitura que faz com a linguagem verbal transforme os conteúdos musicais em metáforas dessas descrições.
MP

07 maio 2007

Como se constrói uma orquestra (7 Maio 2007)

[Arquivo-TAGV]



Professores do Conservatório de Música de Coimbra. «Intervalo TAGV: Concertos Didácticos», 7 Maio 2007, 10h30: «Como se constrói uma orquestra». Fotos MP.

Na temporada 2006-2007, realizou-se pela primeira vez um ciclo anual de concertos didácticos («Intervalo TAGV»), em colaboração com o Conservatório de Música de Coimbra. Entre Novembro de 2006 e Maio de 2007, cerca de 2000 crianças tomaram parte nos dez concertos do referido ciclo, enquadrado no Serviço Educativo do Teatro. Esta iniciativa, que teve como objectivo a sensibilização para a linguagem musical, integrou-se no conjunto de iniciativas de educação artística promovidas pelo TAGV. Os concertos foram dedicados sucessivamente às várias famílias e naipes de instrumentos (DIA 14 NOV, aos metais; DIA 5 DEZ, às madeiras; DIA 17 JAN, aos instrumentos de percussão; DIA 24 JAN, à harpa e às guitarras; DIA 26 FEV, às cordas; DIA 14 MAR, à voz; DIA 18 ABR, às teclas). No último concerto da série, «como se constrói uma orquestra», os vários naipes de instrumentos mostraram-nos como trabalham em conjunto sob a direcção do maestro.

Mas esta não foi a única pergunta que o TAGV formulou ao longo deste ano. Há pelo menos mais duas perguntas em curso no que diz respeito a esta iniciativa e ao seu lugar na programação: como se constrói um concerto didáctico? e como se constrói um serviço educativo? À primeira têm tentado responder os professores do Conservatório de Música de Coimbra e, em particular, Manuel Rocha. O seu modo de prender a atenção das crianças, de estruturar as actividades em palco e de comunicar de forma pedagógica são uma parte importante da resposta à primeira pergunta. À segunda pergunta o TAGV tem tentado responder testando a sua capacidade de programação e de produção: elaborando uma programação educativa anual; estabelecendo uma rede de interlocutores nas instituições de ensino; localizando os destinatários preferenciais de cada iniciativa; tentando encontrar a periodicidade e os padrões disciplinares adequados; instituindo colaborações, como a que envolveu o Conservatório de Música de Coimbra. O trabalho em conjunto que a orquestra implica é, de certo modo, análogo às formas de colaboração necessárias para responder a uma e a outra.
MP

02 maio 2007

Hoje fiz amor pela terceira vez ou beberes é para mim a prova que nada é bem finito

[Arquivo-TAGV]





Ensaios do espectáculo Hoje Fiz Amor Pela Terceira Vez ou Beberes É Para Mim A Prova Que Nada É Bem Finito, pela Associação Penetrarte. TAGV.02.05.2007. Fotos: mArio henriques.

01 maio 2007

Maio 2007

[Arquivo-TAGV]

Agenda mensal do TAGV, nova série, design de Joana Monteiro/FBA.

Aquilo que em cada mês toma a forma de agenda deveria resultar de escolhas determinadas por princípios de programação. Não dispondo o TAGV de uma verba que lhe permita programar à escala da temporada, tais escolhas acabam por ser sobredeterminadas pelas contingências de liquidez a curto prazo. Daí resulta um conflito constante, e insolúvel, entre os padrões (temporais, disciplinares, artísticos) previamente definidos como estruturantes da programação e as decisões avulsas tomadas sob pressão de uma lógica meramente mercantil. Este conflito raramente é explicitado, ainda que uma análise atenta da programação de cada mês permita identificá-lo. O mês de Maio é, neste aspecto, um bom estudo de caso. Mas para isso seria necessário publicarmos também uma outra agenda, alternativa a esta, com a programação que ficou por concretizar. Refiram-se, ainda assim, do concretizável: mais duas estreias-TAGV, pela mão da Penetrarte e da Encerrado para Obras, o ciclo «Doc TAGV», o último concerto didáctico da série «Intervalo TAGV», o recital de José Eduardo Martins, um ciclo de cinema dedicado a Norman McLaren, o ciclo «Máquinas de Escrever», a mais recente coreografia da Companhia Paulo Ribeiro, o ciclo «Senses», uma exposição de Feliciano de Mira, uma performance de Alberto Pimenta, o concerto de Andrew Bird e o início dos Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra.
MP