30 janeiro 2007

TAGV Grandes Concertos (Fev. Mar. Abr. 2007)

[Notícia-TAGV]




Não contracenam, a não ser na memória de quem os vier ver e ouvir, mas passarão pelo palco do TAGV numa conjunção feliz: Chirgilchin, Ursula Rucker e Robert Fripp e The League of Crafty Guitarists.

Ciente de que programar consiste também em aproveitar oportunidades, o TAGV vai tirar partido da conjunção fortuita que torna possível reunir músicos singulares em Coimbra. Estão neste caso três dos concertos programados para os meses de Fevereiro, Março e Abril de 2007, que constituem estreias absolutas no TAGV. São três linguagens musicais diferentes, de três latitudes diferentes, que representam da melhor forma as trocas artísticas num mundo globalizado. Trata-se de apostas significativas do Teatro para as quais desejamos o melhor acolhimento possível do público. Só assim será possível ao TAGV continuar a correr o risco de tentar oferecer o melhor.
Datas:
26 DE FEVEREIRO 2007, 21H30: Chirgilchin
28 DE MARÇO 2007, 21H30: Ursula Rucker
20 DE ABRIL 2007, 21H30: Robert Fripp & The League of Crafty Guitarists
Bilhetes à venda a partir de 1 de Fevereiro.

Discografia:
Chirgilchin:
The Wolf & the Kid (1996)
Ursula Rucker:
Supa Sista (2001)
Silver or Lead (2003)
Ma´at Mama (2006)
Robert Fripp & The League of Crafty Guitarists:
The League of Crafty Guitarists Live! (1986)
Live 2: At Victoriaville Festival, Quebec (1991)
Show of Hands (1991)
Intergalactic Boogie Express: Live in Europe (1995)

MP

26 janeiro 2007

Ciclo Senses: Xela e Helios ao vivo no TAGV (25 Janeiro 2007)

[Arquivo - TAGV]

Helios. Ciclo Senses. TAGV 25.01.07. Foto: Mário Henriques.

No centro do palco, por detrás da maquinaria que foi manipulando, Xela partiu de uma base sólida para, de forma analítica, proceder à criação de uma sessão com sentido. A base, uma espécie de banda sonora virtual para uma viagem marítima de contornos assombrados, disponível no álbum The Dead Sea, funcionou como matéria-prima de onde foi retirando elementos e improvisando sobre eles, o que lhe permitiu criar um sugestivo jogo de contrastes, entre rigorosas superfícies sonoras e elementos aleatórios, complexas construções rítmicas e atmosferas intimistas, num misto de tensão e tranquilidade. Por entre sons do mar, sinos e estruturas noise, as peças confundiam-se num magma resultante da amálgama sonora manipulada, cujos ingredientes sugerem indubitavelmente a assimilação das dinâmicas urbanas da electrónica contemporânea e dos sonhos que marcam certos recantos de tranquilidade. Tudo, de forma apaixonada.

Depois de um breve intervalo, na tela suspensa no fundo do palco havia agora imagens de sombras, nevoeiro, nuvens carregadas e minúsculas gotas. Sobre elas a música de Helios movia-se. Dolente, sugeria adormecimento, mas tacteava, cambaleando pelas artérias sombrias que escolheu transitar, como se a matéria ambiental flutuasse pelo espaço, fruto da maneira apurada como o duo foi harmonizando a electrónica minimal com traços de música clássica contemporânea. No seu universo não há passado, nem presente, nem futuro. Há intensidade dramática induzida pelos sons do piano, reverberações, brisas contínuas suspensas no tempo, numa visão do mundo onde, com subtileza, apostam na definição de ambientes em que os elementos naturais – o vento, a chuva, o nevoeiro – se diluem por entre miragens fusionistas.
PDS

Senses ou o corpo electrónico (25 Janeiro 2007)

[Arquivo-TAGV]

Senses: ciclo de música electrónica e multimédia, TAGV: design Joana Monteiro/FBA.

Vendo os concertos de John Twells e Keith Kenniff, ocorre a pergunta: o que tem de particular uma interpretação ao vivo de música electrónica? Entre outras coisas, a relação peculiar do corpo com o instrumento. Os instrumentos acústicos têm, regra geral, uma configuração que se relaciona com uma determinada parte do corpo e que obrigam a uma coreografia de movimentos que fazem o instrumento tornar-se uma extensão do corpo, e vice-versa. É o que acontece quando as baquetas prolongam os braços ao percutir o vibrafone ou quando o trompete se transforma numa extensão da boca e do aparelho fonador. As ondas sonoras não são produzidas sem as formas peculiares de percutir, soprar, dedilhar, friccionar, beliscar, entrechocar, etc. realizadas pelos dedos, as mãos, os pés, a boca, os braços, as pernas. É como se na ergonomia de movimentos e posições a articulação do som se desse na conjunção entre movimento corporal e som. De tal forma que a cada coreografia corpo-instrumento corresponde um conjunto preciso de sons. Por outras palavras, a notação musical poderia ser dada também como notação corporal.

Nos instrumentos electrónicos este vínculo está quebrado, pois os botões e comandos que permitem fazer variar os padrões de som, designadamente as frequências e os espectros harmónicos, não geram uma notação corporal. O gesto de abrir ou fechar o interruptor ou rodar a válvula não tem uma correspondência unívoca com o som. Os fonocaptadores electroópticos, os geradores, os osciladores e os filtros, mesmo quando combinam som mecânico com oscilações puramente electrónicas, implicam uma mediação eléctrica que altera a coreografia da interpretação. A pré-programação permite, de certo modo, que o instrumento toque sem ser tocado, prolongando indeterminadamente no tempo o efeito induzido pelas variações e oscilações na tensão eléctrica. O músico abre e fecha programas, activa geradores e osciladores, fazendo variar os parâmetros que produzem as oscilações do som e as variações de frequência. Esta assimetria entre a quantidade e a disposição de gestos e a quantidade e a qualidade de sons desvincula o corpo do músico do seu instrumento.

É esta distância que se pode observar quando se olha para uma interpretação de música electrónica a partir dos movimentos e dos gestos do intérprete na manipulação dos instrumentos. A digitalização, enquanto tecnologia de representação numérica, contém já essa distância como atributo essencial se pensarmos na relação entre o código-máquina e as diferentes materialidades que podem ser geradas por esse código: sons, imagens, escrita alfabética, pictogramas, imagem animada. É como se o músico se tornasse num fantasma das oscilações induzidas na máquina, isto é, uma criação retroactiva dos parâmetros eléctricos que ele próprio fez variar na máquina. Vemo-los juntos, mas não sabemos bem o que os une. A distância entre o seu corpo e o som é a distância que nos devolve, num eco desencarnado em vibrações sinusoidais, a voz que ele próprio introduzira segundos antes no circuito electrónico. Este diferimento entre movimento e som, este modo indirecto de ressonância, é também aquele que lhe permite improvisar a combinação dos diferentes timbres de oscilações periódicas que ora passam para primeiro plano, ora são absorvidas por novos padrões. É este pano sonoro de improvisação que nos revela a semi-aleatoriedade do resultado e do método para produzir o resultado.
MP

25 janeiro 2007

Alexandre Alves Costa e Nelson Mota no TAGV (24 Janeiro 2007)

[Arquivo-TAGV]






Alexandre Alves Costa, «A Viagem», e Nelson Mota, «Viagem ao Espaço Doméstico e às Cidades da Burguesia no final do séc. XIX»: TAGV, 24 Janeiro 2007 (fotos MP).

Intervalo TAGV (24 Janeiro 2007)

[Arquivo-TAGV]



Alunos e professora do Conservatório de Música de Coimbra. Intervalo TAGV: No Palco há... Harpa e Guitarra: fotos MP (24-01-2007).

Desta vez desfilaram pelo palco do TAGV alguns instrumentos do grupo dos cordofones. Como habitualmente, vieram pela mão de professores e alunos dos vários graus do Conservatório de Música de Coimbra. Pudemos ver e ouvir quatro guitarras diferentes: renascentista, romântica, clássica, portuguesa. A que se seguiu a família dos bandolins. Umas e outros, a solo ou em acompanhamento, foram sumariamente apresentados na relação da forma do instrumento com a forma do som. Com as cordas dedilhadas ou tocadas com plectros - certamente uma das palavras novas que as crianças, sempre muito atentas na plateia, terão levado para casa nessa tarde. Mas as estrelas da tarde foram com certeza as harpas. Entre as peças interpretadas, ouviu-se a canção de embalar que a harpista costuma tocar e cantar aos filhos. As cordas azuis (fá bemol) e vermelhas (dó bemol) da harpa, ao vibrar num glissando cromático - muitas vezes usado no cinema para sugerir uma transição entre a vigília e o sonho ou entre o presente e o passado -, oferecem-nos, de certa maneira, uma imagem do som. Como se as escalas de sons se traduzissem na vibração das cores. Perceber a relação entre a forma do som e a forma do instrumento que produz o som é apreender uma parte da materialidade da música. Aquela em que as ondas começam a oscilar, numa certa frequência, em direcção ao ouvido.
MP

24 janeiro 2007

Blood Simple, Joel Coen (22 Janeiro 2007)

[Crítica-TAGV]

Joel Coen, Blood Simple (1983).

A história é uma. A que vemos enquanto espectadores. No entanto, são várias as “histórias” que vemos, tantas quanto os seus personagens, que acima de tudo vivem no dogma de conhecerem o outro, o que inevitavelmente leva aos mal-entendidos (que seriam resolvidos não fossem as certezas deles).

Durante o filme são lançados pela câmara de Cohen indícios da catastrophe que um dos personagens vai sofrer – o marido, ou a mulher e o amante. Um pouco à maneira do teatro clássico é-nos dada a hybris - o desafio é lançado pelo marido traído ao detective enquanto o pathos se abate sobre a mulher: perseguida e assustada pelo marido. Mas neste filme nada do que vemos é certo e quando nós, espectadores, estamos convencidos de uma coisa - vemos, até com alguma satisfação, a peripeteia: tudo o que era já não é. E toda a trama se desenrola a partir do argumento das personagens que nos envolve em vários filmes dentro de um só.

Muito interessante no filme, e continuando a utilizar a linguagem teatral, é o momento da catharsis, que se desenrola quase desde o início da película (proposta de assassinato) até ao fim. Um pensamento, uma vontade, a concretização do desejo e as suas consequências. A acção da consciência quase tão perfeita como em Crime e Castigo de F. Dostoiévsky. Um pensamento, uma vontade, um desejo que nos trai a nós mesmos, a sua concretização e as suas consequências. Resultado: um filme de sangue e sobre sangue a triplicar, quando na verdade existia a personagem “mistério”. E tudo podia ter sido tão diferente, não fossem os dogmas em que somos educados…

Anabela Gonçalves

Viagem ao espaço doméstico e às cidades da burguesia no final do séc. XIX (11-31 Janeiro 2007)

[Arquivo-TAGV]



Exposição de Nelson Mota, Café-Teatro, TAGV: fotos de Gonçalo Luciano (19-01-2007).

Jules et Jim (17 Janeiro 2007)

[Arquivo-TAGV]

Jim (Henri Serne), Jules (Oscar Werner) e Catherine (Jeanne Moreau), Jules et Jim, François Truffaut (1962).

Jules et Jim, François Truffaut:
Ou a invenção do amor através da libertação do corpo.
Ou o amor em si, todo, é uma trilogia; comedido, louco em brasa ou em paz.
Truffaut não copia o livro, a narração (voz off) abre-nos as páginas e as imagens - em convulsão - são o caminho aberto à nossa imaginação na calçada do amor e da existência humana. O desenho do amor nos corpos em harmonia; da exaltação do desconhecido nasce o fascínio com o tempo de um relâmpago e vai-se consumindo…
Um filme que abraça um livro. O resto é…

Anabela Gonçalves

20 janeiro 2007

Não-acontecimentos ou miniaturas teatrais (19 Janeiro 2007)

[Crítica-TAGV]

e outros diálogos, de João Camilo, produção do Projec~ (TMG), encenação de Luciano Amarelo, interpretação de Fernando Landeira, Sandra Salomé e Luciano Amarelo: TAGV, 19 de Janeiro 2007. Foto © Projec~.

O TAGV recebeu a 19 de Janeiro a primeira produção do Projéc~ (estrutura de produção teatral do Teatro Municipal da Guarda). O título, e outros diálogos, contém já por si todo o programa da peça e da estratégia de encenação: é como se se tratasse de uma parte de um título maior, de que se teria perdido a primeira parte, ficando apenas um fragmento da frase original. A mesma lógica se encontra na cenografia, nos adereços e nos movimentos das personagens, pedaços minimais de um fragmento maior que tem de se inferir a partir de fragmentos ainda mais pequenos. Até a gestualidade de comunicação entre as personagens é apenas esboçada, como se os movimentos coreografassem só uma parte dos movimentos e, tal como nos diálogos, se tratasse de captar qualquer coisa a meio, uma duração que nem começa nem acaba, onde nem sequer o conflito dramático chega a tomar forma. A banda sonora de Albrecht Loops contribui também para esse desenho semi-abstracto das situações e personagens.

Ao caracterizar a estilização da realidade que ocorre nestes textos, João Camilo refere-se ao não-acontecimento que é um acontecimento como sendo o seu objecto teatral. É essa rasura da intensidade e do conflito que faz com que os seus textos se consigam aproximar da duração inexorável do quotidiano e daquilo que, nessa acumulação de horas e dias e anos, corrói o desejo e a linguagem do amor. Torna-se assim possível dramatizar a ausência de dramaticidade, isto é, a quase inevitável auto-destruição que a prosa dos dias opera no sujeito, tolhido pela força do hábito e pela presença contínua do outro, que, quanto mais conhecido, mais estranho se lhe torna. O grau de surdez nos diálogos parece quase a medida dessa estranheza.

Por que morre o amor? Trata-se de uma pergunta que a peça nem sequer quer chegar a formular, talvez por estar fora da escala de miniatura e de pormenor que a define. Só temos acesso à pergunta indirectamente, através da constatação reiterada de um mal-estar mutuamente infligido pelos seres que se vêem presos ao relógio e à ordem que lhes disciplina a agenda dos afectos. O desejo de escrever e o desejo de ler, tal como a substituição do pai pelo filho, ou da mulher pela mãe, são outras tantas substituições dessa irrecuperável perda. São os sintomas da não-duração desse encontro que a memória lhes diz ter acontecido um dia. Até mesmo na celebração do momento inicial, que contém essa outra pergunta sem resposta - «por que nasce o amor?» -, a alegria plena do desejo surge já toldada retrospectivamente por esse conhecimento da perda futura.

Claro que nada disto acontece assim nos textos de João Camilo, na encenação de Luciano Amarelo ou na interpretação de Fernando Landeira e Sandra Salomé. Não há um sentido para o todo, não há um todo sequer, apenas gestos e conversas sem importância, as mais das vezes triviais. Mas é nessa justaposição de micro-situações, no seu não-desenvolvimento dramático, na sua brevidade quase abstracta, que a materialidade do não-acontecimento quotidiano consegue ser desenhada com a precisão de uma miniatura.
MP

19 janeiro 2007

Rui Zink no TAGV (18 Janeiro 2007)

[Arquivo-TAGV]



A escuta primeiro, e depois a escrita. A regra do jogo proposto: revelar a escrita, mostrando-a e falando sobre ela. Como processo, como prática, como técnica, como trabalho, como mistério. Foi com o conto inédito «O jogo literário» (2007) que Rui Zink iniciou o novo ciclo do TAGV, «Máquinas de Escrever». Um conto que quase parecia ter sido escrito de propósito para a ocasião. Como acontece no conto «O Bicho da Escrita» (2001), um monólogo dramático sobre o pesadelo de um mundo composto apenas por escritores, Zink escrutina neste novo texto, de forma irónica, a auto-imagem da importância do papel do escritor. A fala alarmada do último leitor do mundo, d' O Bicho da Escrita, transfigura-se aqui na fala alarmada do escritor que poderia ter perdido a obra que nem sequer chegou a escrever.

O escrutínio do escritor é feito a partir de um acontecimento trivial: um corte de electricidade no prédio onde mora o narrador (um escritor de nome Rui), que se tinha ausentado por momentos, para ir ao café da esquina, tendo deixado o computador ligado. O acesso de fúria causado pela possibilidade de ter perdido a obra em que estava a trabalhar determina o tom do conto, bem audível nas variações de ritmo e de intensidade da voz na leitura. Despeitado por causa da alegada desconsideração dos «trabalhadores manuais», que faziam obras no rés-do-chão, pelo «trabalhador espiritual», que trabalhava no quinto andar sem elevador, o paranóico narrador vai debitando uma espécie de breviário sobre a alta missão do escritor («Um escritor devia sempre acreditar que o seu romance iria salvar o mundo. Senão para que escreveria ele?»). A lista de lugares-comuns grandiloquentes dá-nos essa auto-representação da função da escrita como revelação do mundo, dolorosa procura anagramática da «alma» na «lama». Lida retrospectivamente, a partir do desfecho, no entanto, essa lista serve em última análise para justificar o seu próprio falhanço como escritor que não está à altura da ideia que constrói de si e da escrita.

A auto-ironia narrativa torna-se retrospectivamente evidente quando nos damos conta não só de que Rui não tinha escrito nada que valesse a pena não perder («Por acaso, tiveram sorte, não só o computador estava em sleeping mode como não havia, também, nada escrito. Nada de jeito, pelo menos. O livro – o livro que nos redimiria – ele receava lamentar ter de informar, nunca seria feito.»), mas sobretudo quando a própria possibilidade de escrever a obra que nos redima é não escrevê-la («Porque a única forma de escrever, com sucesso, o romance da nossa redenção era não o escrever. Soubesse ele como o escrever, tivesse-o ele escrito, e estaríamos irremediavelmente perdidos. Assim, com alguma sorte, ainda há esperança. Se Deus quiser, claro.»). Quer dizer que o mito da criação como acto redentor já só consegue ser incorporado como derisão, que deflaciona o sublime poético no horizonte da perda como conhecimento último da vida.

Como noutros textos de Rui Zink, o jogo de vozes é sempre paródico: mesmo quando fala a sério é como se a voz do narrador fosse sempre tomada de empréstimo e ele não acreditasse verdadeiramente no que diz. Nisto reside a dimensão pós-moderna do seu jogo literário: não havendo já a possibilidade de falar em primeiro grau, isto é, sem a mediação explícita (por citação e pastiche) de outras falas e de outras escritas, também não se perdeu ainda inteiramente a possibilidade mimética, isto é, a possibilidade de representação do real através de uma ligação à experiência, ainda que indirecta e enviesada. Isto permite entender as referências que Rui Zink faz à dimensão simultaneamente autobiográfica e não-autobiográfica da escrita. Permite entender ainda a sua referência à necessidade de criar as condições de trabalho, isto é, a capacidade de escuta e de atenção aos sinais do mundo, que permitam ao corpo reconhecer o toque da inspiração.

Máquinas de Escrever 1, Rui Zink, TAGV: fotos de Mário Henriques (18-01-07).

«Isto dava que pensar. Duvidava que eles tivessem assim tanta urgência em desligar a electricidade do prédio se soubessem que eu escrevia à mão – porque aí saberiam que não o poderiam prejudicar. Nem sabia se eles eram ou não analfabetos, nem isso lhe interessava, o que poderia isso adiantar para a sua felicidade? Só sabia é que eles assim não o poderiam prejudicar. Talvez nem o tentassem prejudicar. Porque escrever à mão faria dele, de uma certa forma, um trabalhador manual (como eles), torná-lo-ia (de certa forma) um deles, e aí se calhar já não teriam tanto ressentimento. Isto era ele a especular. Nem sabia se eles sabiam que ele escrevia. Mas sabiam, claro que sabiam. Como poderiam eles não saber? As pessoas no prédio falavam, a sua empregada falava decerto com eles, trocavam por assim dizer informações, pequenas coscuvilhices sobre a vizinhança, e não havia nada que as pessoas mais quisessem saber do que aquilo que, para elas, era estranho. Aquilo que era diferente delas. E ele tinha a certeza de que, para eles, devia ser desde logo estranho que, desde que tinham chegado ao prédio para fazerem as obras do condomínio, em vez de ele andar aos saltinhos pela cidade feito pulga hiperactiva, ou pelo mundo feito rã insuflada, passasse o tempo em casa. Mas julgavam que ele era o quê? Um canguru narcísico, como os outros escritores, um bode ambulatório, um salta-pocinhas com ares de importante e um passaporte com mais carimbos que pevides numa melancia? Era isso o que esperavam dele? E o que tinha ele a ver com o que esperavam dele?»

Excerto de «O jogo literário», 2007, de Rui Zink, conto inédito, lido pela primeira pelo autor no TAGV, a 18 de Janeiro de 2007.
MP

15 janeiro 2007

Cinema de animação no TAGV (15 e 16 Janeiro 2007)

[Arquivo-TAGV]

Fotograma de O Poeta Dinamarquês, de Torill Kove (Noruega, 2006). Prémio para a Melhor Curta-metragem (ex-aequo), Cinanima 2006.

A animação contém a essência do cinema. Nela se articulam, de forma esquemática, todos os processos sintácticos que produzem a ilusão de movimento e de emoção que associamos ao cinema. Podemos tentar enumerá-los: uma sintaxe de planos, de enquadramentos e de movimentos de câmara; uma sintaxe de luz e sombra, de cor e traço, de superfície e profundidade; uma sintaxe de expressões faciais e de movimentos corporais; uma sintaxe de objectos e de espaços; uma sintaxe de sons e de música; uma sintaxe de falas; uma sintaxe que articula, em inúmeras combinações, todos os elementos anteriores, gerando uma infinidade de frases; e, por fim, a sintaxe da montagem que transforma em narrativa o conjunto das combinações e justaposições de todas as frases. Num filme de animação torna-se evidente a natureza esquemática do cinema, isto é, o modo como o seu conteúdo de ideias e emoções é produto de um «storyboard». Ao emular a temporalidade como objecto ou desenho animado diante dos olhos do espectador, o filme de animação permite-lhe apreender a natureza cinética do próprio pensamento.
MP

13 janeiro 2007

Atrás da frente

[Máquina-TAGV]


Pedro Dias da Silva e Elisabete Cardoso, Frente de Casa, TAGV: fotos de Maria Miguel Ferrão (28-07-2006).

Enumerar exaustivamente as tarefas, também aqui, seria empreendimento vão. Representá-las através do gesto de tomar notas ou de sublinhar uma folha é certamente ficar aquém da forma de trabalho específica chamada «frente de casa». Mas esse é sempre o dilema da representação: como representar o todo na parte? O trabalho é fotografável? Como? Através dos gestos e dos instrumentos que lhe estão associados? Dos espaços físicos onde tem lugar? Das posturas corporais que origina? Das pessoas através das quais uma função se realiza? É na frente de casa que ocorre uma parte substancial das trocas do Teatro com o exterior: receber artistas e público, activar a emissão de bilhetes, canalizar a comunicação telefónica para fora e para dentro do Teatro, coordenar a ocupação dos camarins, supervisionar a entrada e a saída do auditório e todos os movimentos colectivos em geral, fazer cumprir as normas de segurança. No placard podem ver-se vestígios desta organização das trocas: a planta do auditório, a escala de serviço de porteiros e assistentes de sala, a grelha de programação mensal, a lista das películas recebidas, avisos vários. Na secretária, são a central telefónica, o fax e o monitor do computador que permitem inferir um pouco mais do todo destas partes. E, mesmo assim, inferir tudo isto é conseguir apenas espreitar atrás da frente.
MP

10 janeiro 2007

Escaparate TAGV (8 Janeiro 2007)

[Recorte-TAGV]

Misérias e grandezas da edição em Portugal

A edição em 2006 serviu de mote a mais um Escaparate. Entre humor e ironia, desfilaram umas quantas misérias e outras tantas grandezas do mundo editorial português. A intenção era, de acordo com o anunciado, fazer o balanço do ano editorial. E, entre humor e alguma ironia, foi exactamente isso que aconteceu na noite de segunda-feira, no café-teatro do TAGV em mais uma edição do Escaparate, o Mensário da Actualidade Editorial que a sala da Universidade de Coimbra lançou recentemente, com a colaboração de António Apolinário Lourenço, Osvaldo Manuel Silvestre, Rui Bebiano e Luís Quintais.

Aos quatro professores da área das ciências humanas e sociais na Universidade de Coimbra, juntou-se segunda-feira João Bicker, um designer gráfico convidado para fazer a apreciação editorial naquela que é a sua área.

Tendo começado por esclarecer o alcance do balanço proposto - “não queremos inflacionar as expectativas no sentido de que vamos aqui fazer um balanço de tudo o que se publicou em Portugal em 2006, o que seria, aliás, uma pretensão impossível de satisfazer, dado o número de títulos editados actualmente no mercado português” – Osvaldo Silvestre apresentou João Bicker, presente no Escaparate “na sua qualidade de book designer, desenhador de livros”.
E em relação a essa “qualidade”, foram referidos dois dos seus mais recentes livros, editados pela Fenda, : “Potlach – O Boletim da Internacional Letrista” e “O teatro e o seu duplo”, de Antonin Artaud, numa tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Mas, para Osvaldo Silvestre, João Bicker é também um notável desenhador de “miolo” de livros, “pela sobriedade, legibilidade e elegância” que confere aos textos.

É que, ainda de acordo com Osvaldo Silvestre, nesse sentido “Bicker é um designer um pouco estranho no panorama actual, porque o que está na moda hoje é fazer coisas espectaculares mas que não se conseguem ler”. Ora, pelo contrário, o trabalho do João Bicker consegue reunir “uma grande legibilidade”.

No decorrer da apresentação, indo de encontro ao que João Bicker defendeu no Escaparate TAGV – a absoluta falta de qualidade no cuidado gráfico da edição em Portugal –, Osvaldo Silvestre disse que “a sensação com a qual se fica muitas vezes é que muita gente que faz design de livros, não o fazendo regularmente, acaba por transportar para os livros ideias do design que lá não funcionam, tentando inventar coisas já inventadas há muito”, acabando por fazer livros “muito artísticos e muito dispensáveis”.

E é por isso que à pergunta “como é que se pagina bem os “Lusíadas”?, só pode haver uma resposta: “Não há nada a inventar, é ir ver uma boa edição de há 500 anos e fazer igual...”.

Lídia Pereira, As Beiras, 10-01-2007, p. 3

08 janeiro 2007

Ainda há documentários? (8 Janeiro 2007)

[Arquivo-TAGV]

Vermeer em Casais de Folgosinho. Fotograma de «Ainda há pastores?» (2006), de Jorge Pelicano.

O ciclo mensal de cinema documental «doc TAGV» abriu hoje com o filme «Ainda há pastores?», de Jorge Pelicano. Trata-se de uma montagem de imagens e de palavras sobre a quasi-extinção da actividade pastoril na Serra da Estrela. Para o observador atento, este documentário mostra sobretudo a natureza discursiva da documentabilidade, isto é, o modo como a construção do sentido decorre frequentemente da omnipresença do argumento. Dito de outro modo, «Ainda há pastores?» revela como o valor de verdade da imagem é sobredeterminado pelas palavras. Como se as palavras servissem para conter o potencial sémico e sensorial das imagens.

No filme de Jorge Pelicano, este conflito latente entre imagem e palavra é demasiadas vezes ganho pela narrativa verbal, que, em off, interpreta para nós o que vemos. A linguagem puramente fílmica das cores, das texturas, dos sons e dos ciclos da natureza, e da actividade humana como parte desses ciclos, é redundantemente inscrita na grelha interpretativa da reportagem televisiva, o que empobrece o trabalho fílmico de Jorge Pelicano. Sobretudo porque, ao misturar um registo vagamente poético com um registo vagamente socioeconómico, o texto verbal não contém nada da genuína interrogação que se encontra nas imagens. Sendo feito antes de interpretações piedosas e idealizadas.

Talvez só no discurso directo de alguns dos entrevistados seja possível reconhecer a tentativa de recolher as imagens das pessoas e das suas palavras de forma etnográfica, quase despida do olhar que produz a nostalgia pelo fim do pastoreio tradicional. Ora é este desejo de fazer narrativa que deita a perder, demasiadas vezes, muito do material especificamente fílmico da obra, cuja delicadeza nos consegue dar muitas vezes - através da luminosidade, dos planos, dos enquadramentos e da montagem - os ritmos da terra e das pessoas que filma. O olhar etnográfico não chega, no entanto, a desvincular-se das convenções da reportagem e da ficção.

O grande exemplo desses momentos invasivos, em que a câmara perde a sua mais que evidente capacidade de escuta, são os que retratam a pessoa de Hermínio ao ponto da caricatura. Neste caso é o género cómico que impõe a sua lógica à montagem. Ocorre também numa das cenas com Hermínio o único momento de «Ainda há pastores?» em que a obra se permite mostrar o observador a passar a observado. Mas o simplismo deste retrato da simplicidade é mais um sinal da simplicidade com que o discurso da obra subordina um conjunto de imagens muito mais fortes que a estória que as coloniza, tornando-o cego relativamente ao seu próprio ponto de vista. O argumento da obra dá como encontrado aquilo de que as imagens parecem ir à procura. E é esse o falhanço desta promessa.
MP

01 janeiro 2007

Janeiro 2007

[Arquivo-TAGV]

Agenda mensal do TAGV, nova série, design Joana Monteiro/FBA.

Não tem havido muitos meses assim. Em Janeiro três novos ciclos mensais têm início: «doc TAGV», «máquinas de escrever» e «senses». «Doc TAGV» pretende ser uma amostragem selectiva do documentário contemporâneo, com particular incidência na produção portuguesa. «Máquinas de escrever» abre o motor da escrita e pede aos escritores que nos mostrem as peças que o compõem – que nos mostrem o resultado, sim, mas sobretudo o processo que produz o resultado. «Senses» traz-nos formas de criação electrónica contemporânea em que música e imagem se combinam em espectáculos multimédia. Este ciclo integra-se na programação TAGV Digital, dedicada à relação entre novas tecnologias e artes do espectáculo. Além de uma selecção dos premiados do Cinanima 2006, o cinema presta culto a um conjunto de seis filmes: Jules et Jim; Blood Simple; The Element of Crime; Delicatessen; O Olhar de Ulisses e The Straight Story. No teatro, destaque-se a reposição de «Hamlets» pelo TEUC, em encenação de Nicolau Antunes; e também a peça «E Outros Diálogos», de João Camilo, no âmbito da cooperação com o Teatro Municipal da Guarda. Por último, mas não o último, refira-se a nova coreografia da Companhia Paulo Ribeiro: «Malgré nous, nous étions là».
MP