29 abril 2007

Tinta-da-china animada (28 Abril 2007)

[Arquivo-TAGV]






Planos do filme «Stuart», de Zepe (José Pedro Cavalheiro), 2006, Som e Música - Paulo Curado, Montagem - Nuno Amorim, Prémio Melhor Animação, XIV Caminhos do Cinema Português, TAGV, 21-28 Abr 2007.

«Stuart» inspira-se na figura e na obra do desenhador modernista Stuart de Carvalhais. Aludindo à técnica de desenho a tinta-da-china e, amiúde, citando figuras e ambientes adaptados de vinhetas e pranchas de Stuart de Carvalhais, o filme de Zepe mostra-nos a banda desenhada enquanto storyboard para cinema. O potencial narrativo decorrente da sugestão de temporalidade entre cada vinheta é aqui transposto para a animação dos desenhos que se vão metamorfoseando e reconfigurando sobre a página e sobre a tela. Esta duplicação do desenho em imagem cinematográfica constitui um dos eixos formais da obra de Zepe. A materialidade gráfica desdobra-se em materialidade cinética, jogando com os efeitos ópticos que produzem, para o olho humano, o conjunto de ilusões de movimento que designamos como cinema.

A alternância entre branco e preto, que obriga o olhar a dividir as formas entre fundo e figura; a alternância entre as duas e as três dimensões, resultante do processamento das coordenadas que definem a distância relativa dos planos; a projecção da sombra na luz e da luz na sombra, que faz oscilar a percepção do interior e do exterior; os ângulos e movimentos de câmara, que induzem movimento na perspectiva do observador, projectando a passagem do tempo sobre a janela da imagem; os raccords de cena para cena, que se articulam muitas vezes com a transição da bidimensionalidade do plano para a tridimensionalidade do espaço; e, acima de tudo, a transformação dos pontos em linhas, das linhas em superfícies e das superfícies em volumes - todos estes elementos são mostrados na sua dimensão elementar, como traços e manchas de tinta, cuja combinação e recombinação resulta no dispositivo percepcional e narrativo que coloca a imagem em movimento.

Mas para que esse movimento possa animar as imagens é ainda necessária a sintaxe de sons e de música que confere densidade referencial e emocional aos signos. A articulação dos desenhos com o som é, de facto, essencial para a criação da disposição imaginária capaz de fazer o espectador entrar no espaço narrativo e emocional próprio da imagem animada. A banda sonora de Paulo Curado é, a esse título, exemplar na articulação com a dança do negro sobre o branco. «Stuart» consegue, de certo modo, animar o interior do desenho, isto é, animar a gestualidade que torna possível ao desenho tomar forma sobre a página ou sobre o écran. Aquilo que vemos, enquanto espectadores, é esse movimento interior das imagens: o movimento que lhes permite ganhar uma forma e o movimento que lhes permite transformar-se noutras formas. O percurso que é feito pela sombra de Carvalhais naquilo que imaginamos como signos da cidade de Lisboa na década de 1930 (nos cais do porto, nas ruas dos bairros populares, em bares e cafés, nos carros eléctricos, etc.) não tem a lógica narrativa de uma estória. Tem antes a lógica do grafismo em movimento. Mesmo a apropriação dos desenhos de Stuart de Carvalhais é feita com esse pressuposto de animar o gesto caligráfico do pincel e da caneta.
MP

26 abril 2007

Zeca Medeiros e Mariana Abrunheiro (24 Abril 2007)

[Arquivo-TAGV]



XII Jornadas de Cultura Popular, Org. GEFAC. Zeca Medeiros e Mariana Abrunheiro no TAGV, 24 Abril 2007. Fotos de José Balsinha.

Robert Fripp & the LCG no TAGV (20 Abril 2007)

[Arquivo-TAGV]



Robert Fripp & the League of Crafty Guitarists, TAGV, 20 Abril 2007. Fotos de José Balsinha.

25 abril 2007

Bonifrates no TAGV (16-17 Abril 2007)

[Arquivo-TAGV]






Eu não sou o Rappaport, de Herb Gardner. Cooperativa Bonifrates. Encenação de João Maria André. Cenografia: Atelier do Corvo. Interpretação: Victor Torres, Fernando Taborda, Alexandra Gaspar, Paulo Pratas, Helder Wasterlain, Cristina Janicas e Francisco Paz, TAGV, 16 Abril 2007. Fotos de José Balsinha.

20 abril 2007

A vida da escrita (19 Abril 2007)

[Arquivo-TAGV]


Ao dizer-nos que a escrita não se distingue da vida, Luísa Costa Gomes mostra-nos como o seu processo criativo é um processo que envolve a totalidade do corpo e a totalidade do ser. É possível descrever a escrita como técnica e aprendê-la como técnica, mas só a busca contínua que permite desaprendê-la parece tornar possível a plenitude do acto de escrita. Não se trata portanto de escrever bem, já que isso seria apenas obter efeitos, produzir um rendilhado de acordo com formas e fórmulas pré-definidas. Trata-se, sim, de ir à procura, de começar sem saber aonde chegar, de descobrir e descobrir-se no processo. Luísa Costa Gomes sublinhou, a dado passo, a luta que a escrita pressupõe com as forças que limitam e dominam o ego do escritor. A escrita seria então uma tentativa continuada de libertação desses constrangimentos.

Por isso nos disse também que a linguagem, e não a psicologia, constitui a matéria da personagem. O corpo da personagem é, antes de mais, um corpo de palavras, mesmo quando encarna no corpo de um actor. É no trabalho sobre a materialidade da linguagem que a possibilidade da ficção como procura e autodescoberta ocorre. Questionada sobre a encenação dos seus textos para teatro - na qual não costuma participar -, referiu a transformação, por vezes, surpreendente, de um texto ou de uma voz em personagem, através do corpo do actor e dos dispositivos de encenação. Como se, relido pelo palco, o desenho abstracto do texto mostrasse a vida da personagem como vida da escrita e da voz da escrita.

Qual o lugar da observação do presente ou do facto histórico num processo de trabalho que constrói a personagem a partir dos mecanismos internos da escrita? Situações e figuras históricas (como acontece com Padre António Vieira, em Clamor, ou com Ramon Llull, em Vida de Ramón, ou com Mary Read, em A Pirata) desencadeiam, no trabalho de escrita, processos próprios de busca de uma forma que não se sabe qual é antes de começar. A escritora referiu ainda a natureza não biográfica nem autobiográfica da sua obra, na qual a observação directa e a experiência individual surgem sempre transfiguradas pelos movimentos internos da escrita. Falando do presente, Luísa Costa Gomes referiu-se à «gritaria» e aos «efeitos afectivos» redundantes característicos das formas culturais dominantes, cuja função descreveu como «formatar as cabeças».

Luísa Costa Gomes no TAGV, Máquinas de Escrever 4 (19 Abril 2007). Fotos de José Balsinha.

Surgiu, quase no fim, uma das perguntas prováveis para uma autora que tem dedicado tanta atenção ao conto: o que há de específico na forma breve? Apesar da predominância de um certo modelo do conto anglo-americano, parece não ser possível uma definição estrutural do conto que esgote a multiplicidade de configurações que assume. Disso seriam exemplo os contos de Anton Tchékhov, na sua extensão variável, na natureza de quase não-acontecimento das situações que narram e na irresolubilidade que as define. Luísa Costa Gomes referiu ainda um dos seus últimos contos, «As Mães» (2006), como exemplo da transgressão que a forma do conto permite. As dezenas de contos publicados nos 20 números da revista Ficções constituem uma amostra da versatilidade translinguística e transcultural da forma da narrativa breve.

A ficção pode ser uma forma inexplicável de felicidade. Talvez A Pirata (2006), último romance de Luísa Costa Gomes, seja um bom lugar para observar esse júbilo imotivado da ficção, isto é, o puro prazer que advém dos actos de escrever e de contar, e que os torna independentes da moralidade mimética da representação. À maneira de alguns romances do século XVIII (como acontece em obras de Fielding, ou Sterne, ou Diderot, por exemplo), a voz da autora assoma constantemente, devolvendo as aventuras à superfície da página e aos actos de escrita e de leitura que sustêm o contrato ficcional. Às vezes é uma espreitadela apenas, em três ou quatro palavras entre vírgulas; outras vezes, ocupando frases e parágrafos, é quase meio corpo que aparece nesse limiar; e, por uma vez, chega mesmo a ser um capítulo completo, qual entrada de corpo inteiro, espalhafatosa e absurda.

Esta chamada de atenção para a construção da estória é feita através de interpelações directas ao leitor, por vezes acentuadas por discrepâncias no registo de linguagem e por estranhamentos provocados por anacronismos. O mimetismo na figuração psicológica das personagens ou o mimetismo na figuração histórica de objectos, acontecimentos, cronologias e lugares funciona quase sempre como pastiche e paródia, revelando que o mundo contado é um efeito do modo particular de narração e de descrição que o produz. Nesta representação de segundo grau, deliberadamente consciente da sua mecânica narrativa, é a própria escrita que se oferece como a manifestação mais exuberante da vida. Aquela que permite ao leitor partilhar dessa descoberta de si mesma que a escrita pode ser.
MP

Kemikafields + Victor Gama [Ciclo Senses: 19 Abril 2007]

[Arquivo-TAGV]


Kemikafields. Ciclo Senses. TAGV 19.04.07. Fotos: Mário Henriques.


Victor Gama. Ciclo Senses. TAGV 19.04.07. Fotos: Mário Henriques.

12 abril 2007

Máquina de letras

[Máquina-TAGV]

Robert Fripp Soundscapes & The League of Crafty Guitarists, TAGV, 20 de Abril de 2007. Cartaz desenhado por Joana Monteiro/FBA.

Para nos pormos no seu lugar é preciso imaginar o desenho das letras - o corpo, a face, o estilo, o peso. Serifá-las e desserifá-las. É preciso mudar a tipografia em topografia e fazer dançar as letras no espaço. O espaço que elas produzem e aquilo que as produz como espaço. A objectividade do traço como correlato da objectividade do objecto referido pelo traço. Como se a materialidade gráfica permitisse tornar concreta a abstracção dos signos. Para as letras se chegarem a iluminar é preciso que o acto de iconografar, isto é, o acto de produzir semelhanças entre a forma do signo e a forma do objecto do signo, mantenha a tensão entre a representação puramente abstracta e a sensorialidade perceptiva da letra enquanto objecto. Do grau de tensão entre esses dois movimentos opostos (em direcção ao abstracto da semântica do signo e em direcção ao concreto da matéria do signo) depende a força do desenho gráfico como redescoberta da escrita, da forma da letra, do terreno da página. Para nos pormos no seu lugar é preciso imaginar não só uma solução para cada problema, mas um problema para cada solução. É preciso imaginar, acima de tudo, o prazer de fazer, que é o prazer de procurar, de descobrir o pensamento a pensar e segui-lo, através dos olhos e das mãos, até ao momento da invenção.

É nessa entrega ao exercício de imaginação gráfica que o trabalho de Joana Monteiro permite ao TAGV ser também uma máquina de letras. Nas folhas volantes, nos cartazes, nas folhas de sala, nas agendas, nos vidros, nas paredes, nas telas, nos écrans, toma forma o Teatro como espaço escriturável e legível. Nesse espaço gráfico, que tomámos de empréstimo à sua imaginação, podemos existir como entidade imaginária, como signo entre signos. Podemos nomear e ser nomeados, e encher a cidade de mensagens. Ao pensar cada objecto gráfico como problema específico, o acto de construir sentido com as letras confere-lhes um poder evocativo singular. Podemos depois padronizá-las e repeti-las. Criar uma identidade. Mas a luz produzida pelo néon não se adequa apenas a paisagens sonoras engenhosas, é também uma imagem da iluminação interior que é encontrar uma forma que não havia antes e ver o pensamento transformado em matéria. Na máquina do Teatro, pertence à desenhadora essa electricidade da letra.
MP

Jaime Rocha no TAGV (11 Abril 2007)

[Arquivo-TAGV]

«Situação:
Uma casal de camponeses com um filho adulto, deficiente mental, prepara-se para abandonar uma aldeia do interior. São os últimos residentes. Vêem-se obrigados a sair porque a aldeia vai ser arrasada e no seu lugar irá surgir um grande eucaliptal atravessado por uma auto-estrada. O Pai está à porta do casebre e grita para a mulher e para o filho, que se encontram lá dentro.

Pai - Despachem-se. Não quero ficar nesta terra nem mais um segundo!
Mãe - Vai andando, só falta pendurar os panos.
Filho - Andando, andando...se quiser...andando...
Pai - Já não faço aqui nada, nem sirvo para nada. Porque não deitas as panelas para o poço? Seria mais lógico. Haveriam de ficar enterradas até que a água secasse e viesse um outro mundo e as descobrisse. Olha, mete um anel lá dentro ou uma chapa com o nosso nome. Alguém haveria de dizer que aqui viveu Josué Formiga Canelas e a sua família. Bem, vou-me embora sozinho. Vendo bem, para que vos quero agora, que já nada nos pertence?
Mãe - (Espreita) Pensas que não te estou a ouvir. (Mostra uma bolsa de dinheiro) E isto não é nada?
Pai - Isso não paga nem um décimo do que a terra vale.
Mãe - Um décimo? Temos aqui dinheiro para toda a vida e ainda te queixas!
Filho - (Espreita também e gesticula) Andando...andando...
Pai - Pensa no teu filho. Quem é que vai aceitar o pobre diabo?
Mãe – E se ficássemos mais um bocadinho, nem que fosse até a máquina chegar!
Filho - É a máquina..lá fundo...a máquina...a ouvir...a ouvir...
Pai - (De novo sozinho) Qual máquina, nem meio máquina. Agora também este ouve coisas onde elas não estão. Dizem que vem, mas nunca há-de vir. Sei bem como é. Sempre foi assim. Dizem que vem, mas nunca chega. E para que quero eu aquele dinheiro, não me dizem? Nem para comprar porcos serve! Despachem-se!
Mãe - (Dentro de casa) Já vamos!
Pai - Eu quero é desaparecer daqui, antes que me vejam acabrunhado como um velho. Vou por ali abaixo, atravesso o vale e meto-me pelo ribeiro adentro até mais ninguém saber de mim. Que vou eu fazer para a cidade se não conheço lá ninguém? Pergunto e pergunto bem, que vou eu fazer para a cidade? Se pensam que me obrigam a ficar num outro cemitério que não seja aquele ali na vila, estão enganados. Máquina! Não há máquina nenhuma que corra comigo daqui!
Mãe - (Para o filho enquanto fecha a porta do casebre) Vá, anda, atrás do teu pai.
Pai – Antes eu tivesse ido para França enquanto era tempo!
Mãe - (Mostrando a bolsa do dinheiro) Isto é que conta. Ou pensas que é com couves que uma casa se governa?

Excerto de No Ervilhal (peça em um acto, inédita), de Jaime Rocha.


Máquinas de Escrever, TAGV, 11-04-2007. Leitura da peça em um acto «No Ervilhal», de Jaime Rocha, por António Mortágua, Alexandre Lemos e Ana Beirão. Fotos de Pedro Dias da Silva.

Eram inúmeras as perguntas possíveis. De onde vêm as ideias para uma cena ou uma peça? Como se definem as personagens e as situações? Como se desenvolvem os diálogos? Como se definem as acções em palco e os adereços? Como se sabe que uma cena ou acto chegou ao fim? O desenvolvimento das cenas surpreende quem escreve? Há uma ideia inicial da estrutura da peça, ou as cenas vão-se somando umas às outras sem essa ideia prévia? A ordem das cenas e dos actos corresponde à ordem de escrita, ou resulta de uma reordenação posterior? A dramaticidade das situações e dos conflitos é descoberta no acto de escrita? Ou já existe alguma noção prévia? E, se existe, qual é a diferença entre esse esboço inicial, mental ou no papel, e o resultado final? Há muita reescrita e revisão, ou não? Por outro lado, quando o texto toma forma sobre o palco que relação estabelece com o original sobre papel? Que espaço há, nos textos, para aspectos específicos de encenação que transcendam o texto? Que o reescrevam cenicamente? Há uma dimensão autobiográfica na sua escrita teatral?

Foi com o exemplo de «No Ervilhal» que Jaime Rocha começou a reflexão sobre o seu processo de escrita para teatro. Começa por uma situação, muitas vezes imaginada a partir de uma observação quotidiana. Começa também por um conjunto de personagens, tão definidas quanto possível, isto é, com uma identidade social, familiar, individual. Situação e personagens, uma vez definidas, determinam a lógica de desenvolvimento dos diálogos. As falas impõem, de certo modo, a sua própria necessidade. Ou seja, o encadeamento das falas decorre das restrições criadas pela definição da situação e das personagens. Como se o autor as ouvisse a falar ou como se soubesse o que elas vão dizer. Jaime Rocha diz-nos ainda que escreve para os actores, isto é, imagina as palavras nos corpos dos actores, como palavra viva e em acção. É por isso que gosta de encomendas: escrever para um determinado conjunto de actores, ou partir de uma proposta de situação dramática, é criar mais uma restrição para o jogo combinatório de falas e personagens.

Uma parte do processo ocorre antes da escrita, como processo mental de imaginar situações, personagens e diálogos. Passam ao papel, primeiro, como marionetas do escritor, como efeitos das suas motivações e intenções; depois, ganham a densidade que advém do próprio processo de escrita, e que as vai autonomizando. Esta autonomização das vozes, no entanto, é limitada pela pré-estruturação criada pela definição das situações e das identidades das personagens. Há, portanto, um plano de conjunto que subordina o desenrolar dos diálogos. Além disso, a lógica das falas é ainda determinada pela polifonia das vozes e pela relevância similar das várias personagens. O conflito é desencadeado com frequência na própria linguagem, quando a personagem diz o que não queria dizer ou o que não sabia que ia dizer. Nessa medida, o teatro de Jaime Rocha é um teatro da palavra: da escuta da palavra e da acção da palavra.

É isso o que acontece, por exemplo, em Seis Mulheres sob Escuta (2000), cuja acção decorre numa prisão de mulheres nos anos 60, tal como é recordada por uma delas. Inês, Rosário, Mónica, Zulmira, Clara e Fátima mostram-nos, ao mesmo tempo, o princípio da polifonia das vozes, que ganham idêntica importância no conjunto da peça, e o princípio da linguagem como lugar do conflito. Revelam-nos também a definição realista das situações e da identidade das personagens, uma das características do teatro de Jaime Rocha. Um realismo que, ao entrelaçar o cómico e o trágico, não deixa de conter um veio inquietante de loucura - a falha que torna opaca para o escritor a origem do seu impulso criativo e que torna incerta para a personagem a ontologia da sua imagem do real, toldada pela fantasia do desejo e pelo pesadelo da morte.
MP

Aprovados estatutos da Fundação da Universidade

[Recorte-TAGV]

O Senado aprovou ontem os estatutos da Fundação Universidade de Coimbra, dando assim o primeiro passo que inicia o processo de formalização e criação desta nova estrutura.

Projecto em que aposta o actual reitor da UC, Seabra Santos, a Fundação da Universidade surge com os objectivos de "promover, apoiar e dinamizar iniciativas no âmbito da actividade científica, cultural e social" da universidade e das suas unidades orgânicas.

Da Fundação da Universidade fazem parte, para já, o Teatro Académico de Gil Vicente, o Estádio Universitário, o Auditório da Reitoria e ainda a administração do Palácio de S. Marcos. No entanto, no futuro, a fundação poderá vir a integrar outras unidades da Universidade de Coimbra.

"Dinamizar acções tendo em vista a preservação e beneficiação do património afecto à universidade e suas unidades orgânicas, e a sua utilização eficiente na prestação de serviços à comunidade académica e à sociedade em geral" são também funções atribuídas à nova estrutura.

De acordo com os estatutos ontem aprovados, à Fundação da Universidade compete orientar e coordenar a actividade e a gestão do Teatro Académico Gil Vicente, do Estádio Universitário e do Auditório da Universidade, uma acção a desenvolver "em estreita articulação com os órgãos directivos das unidades referidas e no quadro de um regulamento a aprovar pelo Senado".

A criação da fundação irá permitir o desbloqueio de alguns constrangimentos financeiros, nomeadamente do TAGV que poderá então receber contribuições ou subsídios, provenientes de entidades públicas ou privadas. Como referiu ontem Pedro Santos, do Gabinete de comunicação da UC, o TAGV, por exemplo, estava impedido de se candidatar a apoios para a sua actividade cultural, por pertencer à universidade, ao contrário do que acontecia com os restantes agentes culturais da cidade.

Dora Loureiro, As Beiras, 11-04-2007

06 abril 2007

Até que a morte nos separe (5 Abril 2007)

[Arquivo-TAGV]

«Tim Burton no TAGV», A Noiva-Cadáver (2005), TAGV, 05-04-2007.

A Rainha das Almofadas de Alfinetes
tem uma vida dura.
Quando se senta no seu trono,
grande dor a perfura.

Tim Burton, A Morte Melancólica do Rapaz Ostra e Outras Estórias (1997, trad. Margarida Vale de Gato)

Não há como levar até ao limite a lógica que determina a racionalidade dos nossos actos para perceber que, no limite, o sentido dessa lógica nos escapa. Isto é, o seu sentido é sem sentido. Ou antes, apenas a fantasia com que os seres humanos organizam as suas relações permite fundar a interpretação que fazem dos seus próprios actos. Uma vez estabelecido o vínculo entre fazer e fantasiar fica criado um padrão de cultura, fica fundada uma prática social, fica definido um conjunto de valores, ficam activados os dispositivos de interpretação que tornam justificáveis e inteligíveis os nossos actos.


Entre estes, encontramos as trocas económicas e simbólicas que, estruturando as emoções e os sentimentos, produzem o casal e a família como formação social e como modo de existência por excelência. De certo modo, o que o romance enquanto género literário e, talvez mesmo, a maior parte das narrativas procurem representar seja essa experiência essencial da existência humana que o amor constitui, enquanto acto de auto-determinação, que é, ao mesmo tempo, hetero-determinado. Justamente pelo estranhamento anti-realista criado por situações e personagens, aquilo que Tim Burton consegue fazer nos seus desenhos, poemas e filmes é revelar a matéria fantástica contida na vida humana enquanto vida da imaginação.


A narrativa d'«A Noiva-Cadáver», como a d'«O Estranho Mundo de Jack», inverte a fantasia de que parte: se, num caso, isso resultava num anti-Natal delirante, no outro resulta numa união amorosa absurda entre mortos e vivos. A inversão que ocorre nas estórias de Caroline Thompson nunca chega a ser verdadeiramente subversão, talvez porque o principal prazer, de autores e espectadores, resida em serem capazes de seguir a fantasia apenas até ao limite daquilo que está contido nas metáforas com que dão forma inteligível às emoções e desejos. E nesse limite, conseguido pela inversão de personagens e situações (que transformam as mãos em tesouras, o dia em noite, a noite das prendas em noite das partidas, o mundo terrâneo em mundo subterrâneo, a vida em morte), torna-se necessário reconhecer e reafirmar códigos e valores contidos nas narrativas de que partimos. O que implica sermos fiéis às metáforas, mesmo depois de lhes conhecermos os mecanismos. Como se submetermo-nos a elas fosse também a única forma de reconhecermos a nossa humanidade.


«A Noiva-Cadáver» não se limita a literalizar um conjunto de metáforas provenientes do mundo gótico e ultra-romântico, com a alegria sombria que serve geralmente de matriz aos contos filmados por Burton. A noiva (desdobrada em noiva-viva e noiva-cadáver) serve, ao mesmo tempo, para selar a união económica entre burgueses em ascensão e aristocratas em decadência, reflectindo o momento histórico da ascensão da burguesia, e para afirmar o casamento baseado nos afectos, reflectindo o momento cultural da ascensão do casamento romântico. Nesse desdobramento, «A Noiva-Cadáver» encena paradoxos contidos na representação das relações entre o amor e a morte: não apenas o amor até que a morte nos separe, como união entre vivos, mas também o amor depois da morte, como união entre mortos, e o amor que a morte não consegue separar, como união entre vivos e mortos. Acima de todas as outras, «A Noiva-Cadáver» dramatiza a metáfora do amor como conversão altruísta que torna possível ao sujeito abdicar do objecto de amor fazendo dessa abdicação a manifestação máxima do amor. É nesta sublimação que se vê como, no imaginário gótico, o acto de desejar se submete à lógica da fantasia que o produziu como capaz de transcender a morte e, em particular, a sua própria morte.
MP

Diários da Bósnia (2 Abril 2007)

[Arquivo-TAGV]

Joaquim Sapinho, Diários da Bósnia (2005), «Doc TAGV» (02-04-2007).

«Ao longo da jornada sucedem-se paisagens de caos e desolação. A cada passo, telhados esventrados e paredes calcinadas - testemunhos silenciosos e assombrados dos combates que sérvios e muçulmanos ali travaram. Logo à saída de Zvornik e, mais adiante, ao longo dos povoados que polvilham as áreas de Cerska, Bratunac ou Srebrenica, inúmeras casas abandonadas, habitadas, na sua maioria, por muçulmanos escorraçados da região pelo avanço sérvio.
Mais adiante, meio escondida no arvoredo que bordeja as margens do Drina, uma aldeia sérvia, abandonada, igualmente, depois de os antigos habitantes terem sido expulsos ou chacinados pelos bandos muçulmanos. Por toda a parte, casas destruídas, paredes que o fogo consumiu. Um espectáculo de destruição e abandono.» Carlos Santos Pereira, Da Jugoslávia à Jugoslávia (Lisboa: Cotovia, 1995), pp. 19-20.

Ao documentar a suas duas viagens à Bósnia-Herzegovina (em Julho de 1996 e em Janeiro de 1998), Joaquim Sapinho coloca lado a lado o modo individual de construção da memória e o modo fílmico de representação do real. A opção por uma câmara subjectiva, que coincide com o seu olhar individual (isto é, com as suas próprias tomadas de imagem, com a sua chegada, com as suas deslocações, com os locais que visitou e revisitou, com as pessoas que conheceu, com a sua partida), expõe o problema da memória individual enquanto selecção e montagem de representações construídas a partir da experiência. O diário é precisamente este modo de construir uma narrativa da passagem do tempo que tenta fixar uma memória dessa passagem. Neste aspecto, o ponto de vista e o lugar de observação têm equivalentes no ângulo de filmagem e nos planos de enquadramento, do mesmo modo que a selecção dos momentos significativos verbalizados como diário corresponde à montagem dos registos fílmicos obtidos e seleccionados. Tal como acontece com a memória subjectiva individual também a memória fílmica se constrói a partir da sobreposição de memórias de tempos diferentes. A intercalação das imagens colhidas nos dois momentos mostra-nos, na materialidade fílmica, como se sobrepõem os veios e as camadas da memória humana.

Diários da Bósnia coloca sobretudo a questão da possibilidade de construção de uma memória colectiva: como construir uma memória que faça justiça à história, isto é, uma memória capaz de se lembrar do que aconteceu na guerra entre sérvios-bósnios e bósnios-muçulmanos entre 1992 e 1995? Capaz de representar o cerco de Sarajevo e os massacres de Gorazde e Srebrenica? Ao querer construir uma memória de uma guerra que não testemunhou, a câmara de Diários da Bósnia revela ao espectador a dificuldade de documentar o tempo. Limitada, como o sujeito, a documentar o seu próprio presente, o acontecido não-testemunhado só pode ser dado por alguns dos vestígios duradouros da guerra: não já os corpos, nem os gritos e os choros, não já a rapacidade e a violência dos gestos, não já a legitimação da morte, mas apenas edifícios calcinados, casas metralhadas, paredes rasgadas por obuses, barricadas de automóveis, cemitérios.


A natureza metonímica do cinema, isto é, a sua capacidade de representar o todo pela parte, pode assim ganhar também uma dimensão temporal. Sabemos, pelos vestígios nas paredes e nas ruas, que a cegueira e a brutalidade daquela guerra tomaram um dia conta daqueles lugares. Diários da Bósnia tenta construir essa memória como um imperativo ético: o imperativo de conhecer a história como forma de auto-conhecimento. Na relação entre as palavras e as imagens, e sobretudo nas imagens silenciosas entre cada fragmento da narrativa em voz off, fica documentada a extensão da memória que um filme pode ser, mas também a dificuldade de construir uma narrativa que se constitua como memória. E que consiga sugerir a ligação entre memória individual e memória colectiva. Ciente da limitação dos apontamentos que toma do real, sabe que não pode deixar de lutar contra a neve que sempre cai sobre a barbárie. Ainda que só consiga registar essa tentativa de registo.
MP

04 abril 2007

Ver o olhar

[Arquivo-TAGV]

Pedro Medeiros, «Carro de Compras com Fotografia» (2007), peça da exposição «sem nós nem abrigo», TAGV, 19 de Março a 9 de Abril 2007. Fotos MP, 03-04-2007.

A exposição «sem nós nem abrigo», composta por instalações, fotografias e projecção de diapositivos, foi coordenada por Carlos Antunes e apresenta obras de Inês de Moura Lourenço, José Maria Pimentel, Nuno Patinho, Pedro Medeiros, Paulo Abrantes, Rui Centeno e Sérgio Azenha. A Cooperativa Bonifrates propôs aos artistas que olhassem para os sem abrigo em Coimbra, alargando à realidade social o olhar contido na representação teatral Eloídes, de Jerónimo López Mozo, estreada a 29 Janeiro. Como tentativa de ligar o exercício de representação teatral ao acto de conhecimento das condições concretas da existência colectiva, o projecto da Bonifrates coloca o problema da função social da arte: para que serve, afinal, o acto de imaginar a vida dos outros?

Todas as obras desta exposição, e em especial as de Pedro Medeiros, Nuno Patinho e Paulo Abrantes, colocam em primeiro plano o problema da representação, isto é, o problema da construção do olhar sobre o objecto. E esse é, com efeito, o problema fundamental de qualquer representação do outro, seja como objecto de um acto artístico, seja como objecto de um acto de conhecimento destinado a conceber uma política social. É possível representar o outro? Ou apenas o olhar sobre o outro? Mesmo quando, ou sobretudo quando, o olhar se apresenta inconsciente de si mesmo? Como se ajustam as representações aos objectos? Como se constroem representações justas? E, uma vez construídas, para que servem? Para justificar uma política social? Para justificar uma exposição? Como se passa da ordem da representação para a ordem da acção?

Um retrato sociométrico dos sem abrigo recolherá parâmetros como nome, idade, situação familiar, rendimento, apoios sociais, saúde física e mental, percurso de vida, origem geográfica, locais de pernoita, etc. Um retrato fotográfico, por seu turno, pode dar-se como testemunho documental: da fisionomia, da expressão, do modo de vestir, do corpo num local determinado, de um pormenor ampliado do rosto, das mãos, do corpo, do local. Ou pode dar-se como testemunho auto-reflexivo, isto é, como retrato do próprio olhar que retrata: do ângulo, do enquadramento, da luz e daquilo que os dispositivos especificamente fotográficos escondem ou revelam. Por isso os objectos mais interessantes da exposição são os que procuram representar não só o lugar do objecto da câmara, mas o lugar do sujeito que segura a câmara.


O que acontece quando vemos o olhar com que olhamos? Reparemos em três respostas diferentes. Através da ausência de imagem («sem nós nem abrigo»), Nuno Patinho sugere a irrepresentabilidade da experiência alheia, daquele modo de experiência em particular, de tal forma que a representação da ausência de olhar e da consequente ausência de objecto se torna um signo do pudor do olhar que duvida da sua própria legitimidade. Numa cultura cegamente voyeurista como é a nossa, o olhar é uma parte essencial do problema, na medida em que é ao olhar que cabe o tremendo poder de objectificar o outro. Que direito me assiste de o representar? Que violência lhe faço quando o represento?

Através de um auto-retrato no mesmo local e na mesma postura do seu objecto («s/título» e «s/título»), Paulo Abrantes faz a pergunta fundamental acerca da condição humana enquanto consciência de um destino comum. Quem é o outro? A sua câmara responde: o outro sou eu. Ser capaz de imaginar outro lugar para mim – neste caso, o lugar de quem não tem casa, nem dinheiro, e por isso está destituído de atributos que alegadamente o tornariam humano, e visível enquanto tal – é certamente uma das funções essenciais da arte enquanto exercício da imaginação sobre a natureza da vida colectiva. Também neste duplo retrato, Paulo Abrantes mostra essa consciência aguda da dimensão ética do acto de fotografar: não apenas da historicidade que determina que, num dado momento, cada um de nós se encontre na posição de fotógrafo ou de fotografado, de com abrigo ou de sem abrigo, mas também do problema da relação entre ver e ser visto, entre ser sujeito e ser objecto, entre representar e agir.


A terceira representação da representação, uma instalação de Pedro Medeiros («Carro de Compras com Fotografia»), torna ainda mais auto-referencial a reflexão sobre a natureza e a ética do olhar do fotógrafo. O carro de compras, que é por si só um ícone da sociedade de consumo e de um modo particular de produção e distribuição de mercadorias, é também um dos objectos apropriados e ressignificados pelo uso noutros contextos, por exemplo, quando usado como meio de transporte do conjunto dos seus haveres por indivíduos sem abrigo. O signo do acto de comprar torna-se então signo da impossibilidade de comprar. A ausência absoluta de dinheiro constitui, aliás, numa sociedade centrada na economia e na mercadoria, a experiência de destituição e de indignidade extrema – aquela que revela a coisificação dos seres humanos contida na lógica mercantil, ao retirar-lhes o último vestígio da essência desse ser económico: o poder de comprar.

O carro de compras contém uma fotografia de um carro de compras vazio («lar»), provavelmente o mesmo carro de compras, provavelmente num parque de estacionamento de um centro comercial. Pelo menos, evoca esse lugar. O vazio do carro de compras fotografado toma agora a forma de uma fotografia do carro de compras vazio fotografado dentro do carro de compras real. E, colocada à venda por 403 euros (valor idêntico ao rendimento mínimo garantido pelo Ministério do Trabalho), mostra a impossibilidade de escapar à lógica mercantil que regula as relações de trabalho e os fluxos de dinheiro entre os indivíduos. A mesma lógica que produz fotografados e fotógrafos, objectos e sujeitos de solidariedade, exclusão e políticas sociais de integração. Uma lógica para a qual nem o acto de ver o olhar com que se olha constitui abrigo.
MP

01 abril 2007

Abril 2007

[Arquivo-TAGV]

Agenda mensal do TAGV, nova série, design de Joana Monteiro/FBA.

O mês de Abril reafirma o compromisso do TAGV com a criação local e universitária. Retomamos o programa estreias-TAGV com a ópera «Bichus», inspirada em Miguel Torga. Acolhemos vários espectáculos integrados nas XII Jornadas de Cultura Popular. Associamo-nos ainda à Semana das Artes, iniciativa interdisciplinar promovida pela Licenciatura em Estudos Artísticos. Como habitualmente, este é o mês dos Caminhos do Cinema Português, festival que realiza a XIV edição. Ao cinema cabe também um pequeno ciclo de filmes de Tim Burton, na semana da Páscoa. Refiram-se duas exposições: pintura de Ana Rosmaninho, a partir da obra de Miguel Torga, e «Eyes Wide Open: olhares cruzados sobre o cinema», trabalhos realizados no âmbito de disciplinas de cinema. A programação educativa prossegue com o ciclo «Intervalo TAGV» e com cinema de animação. Continuam também os ciclos «doc TAGV», «escaparate», «máquinas de escrever», «senses» e « TAGV grandes concertos». Estarão no palco, a 20 de Abril, Robert Fripp Soundscapes & The League of Crafty Guitarists, em estreia absoluta em Coimbra. Basta um olhar de relance para se perceber uma actividade intensa e diversa, desejosa de cativar o público.
MP